terça-feira, abril 30

Gosto não se discute

Adam De Boer
Um amante de literatura sabe do seguinte: o livro te escolhe, não o contrário. Claro que o bibliófilo, amador que seja, pode ter um título em mente ao entrar em um lugar. No entanto, esta é uma ideia já plantava e, àquela altura, criava raízes e se fincava no solo consciente. Para alguns, como eu, entrar em uma livraria, olhar ao redor, e deparar-se com uma obra desconhecida, que, sabe-se lá, atraiu sua atenção, roubou-lhe uns minutos e, ao fim, lançou de sedução para conquistar seu interesse é irresistível. Por essas e outras, sou um amante inveterado de sebos. Nunca sei no que vou esbarrar, somente que conhecerei algo novo. Um bônus do livro usado é as alterações provocadas entre a(s) primeira(s) leitura(s). Grifos, rabiscos, dedicatórias, quaisquer acréscimos inesperados fornecem um sabor especial àquela edição. Às vezes, essas narrativas aleatórias têm o potencial de superar a principal em si. Ou, para ser modesto, ser uma equivalente.

Encontrei uma coletânea de crônicas de Cecília Meireles. “Escolha o seu sonho” é uma reunião de material lido em programas nas rádios do Ministério da Cultura e Educação e Roquette Pinto. O volume que devorei e, enquanto escrevo, descansa em meu colo, é a 3ª edição, impressa em 1968. Além de curiosidades como o logotipo antigo da editora, a cereja do bolo ficou uma “crítica” escrita por, provavelmente, um de seus primeiros usuários. Tirei uma foto e mostrei aos amigos. Porém, sou paranoico e sei da efemeridade das redes sociais. Assim, transcrevo-a de modo a que apreciem seu julgamento:

“Acabei de ler este livro. Não gostei, pois são crônicas e eu não estou acostumada a lê-las; gostei de algumas que aqui citarei:

Arte de ser feliz Camelô caprichado História do bem-te-vi Tarde de sábado O sino e o sono Brinquedos incendiados

O resto das crônicas eram chatas, algumas incompreensíveis e com um fim maluco. Em resumo só o li o livro por causa da prova de português senão nunca teria o lido.” Em seguida, apagado, mas ainda com a marcação legível: “Colegio Cruzeiro 10/ 6/ 69”.

A partir daí, uma trama paralela ganha forma: Quem será esta pessoa? Provavelmente, pela letra e o texto, deveria ser uma criança na época. Estaria ainda viva? Teria tido sua paixão pela leitura despertada por outra obra, ou abandonado de vez o hábito (exceto quando os estudos demandassem)? Será que a autora, essa Cecília, poderia ter conquistado sua hesitante leitora em outro trabalho? Ou teria essa mudado de ideia após algum tempo, relendo a obra e concluído que não era tão ruim quanto na primeira impressão?

Minha empatia, tal como minha curiosidade, se aguça por ela. Quando estudante do ensino médio, li obras de José de Alencar por obrigações escolares. Naqueles anos, sonhei com a ideia de criar um grêmio em repúdio aos livros deste autor. Anos passaram, aptidões se desenvolveram, encarei mais uma vez meu nêmesis romântico. Para minha surpresa, apreciei e seus livros passaram a constar no meu catálogo particular por mérito próprio. Claro que nem todos que redescobrirão um escrito irão rever suas posições. Talvez aquilo nunca fora da alçada. Inclusive, pode ter falhado no teste do tempo, que os mais velhos temem mais do que qualquer prova de português.

Enquanto isso, na contracapa, Cecília Meireles sorri, o que correspondo. Os mistérios da leitura e dos leitores… Sinto-me renovado ao perceber que, independentemente da forma, as histórias se multiplicam. Renovo numa partezinha íntima minha fé, porque ainda há esperança enquanto tivermos uma narrativa a ser escrita. Pois sei que não acabou. Tudo vive além do que imaginamos se mantivermos atentos. Da humanidade à uma resenha literária de meio século. (Aliás, parabéns!)

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