sábado, abril 27

Os livros que nunca lemos

Não é difícil imaginar que Umberto Eco tenha muitos livros. E que, se improvavelmente viver num T3, decerto terá, como muitos de nós, estantes no hall, nos corredores, nos quartos, na sala de jantar.

Já não me lembro onde conta Eco a história de uma senhora que o visitou e, surpresa com tanta “livralhada”, lhe perguntou: «O Sr. Professor já leu estes livros todos?». O Sr. Professor ter-lhe-á respondido (cito de cor): «Não, estes chegaram só ontem, são para ler até ao fim de semana. Na segunda-feira vem o camião da Faculdade para os levar e trazer novo carregamento.»

Eco pretende ilustrar o óbvio: que os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que nunca chegará. Sugere, a propósito, uma irónica e bizarra teoria mágica: tocando os nossos livros que não lemos, ao procurar outros ou a arrumá-los, algo da sua natureza parece “passar” para nós… através dos dedos. E quem sabe se não estará certo? Como ele, também eu conheço confusamente cada um dos livros que nunca li, mas acho que a coisa tem mais que ver com o coração do que com os dedos.

Nicolas Francescon
Há uns meses mandei pintar a casa. Ora, para pintar as paredes com estantes, os pintores retiraram delas todos os livros (todos não, pois quando, em pânico, descobri o que acontecera, instruí-os para que, a partir daí, pintassem apenas as paredes sem estantes) voltando, depois, a colocá-los no lugar. Eu disse “no lugar”? Deveria ter dito apenas “voltando a colocá-los” pois o lugar perdeu-se para sempre. Agora, quando procuro um livro, onde antes o encontrava de olhos fechados, dou sempre com outro.

É assim que venho assustadamente descobrindo a imensa quantidade de livros que tenho em casa, alguns deles desde a juventude, e que nunca li nem provavelmente lerei. Assim, quando um dia destes, fui ao sítio onde sempre estiveram as Poesias Completas de Frei Luis de Léon, dei com O Capital de Karl Marx; e quando procurava as Gramáticas da Criação, encontrei um pouco de tudo, lido e não lido, das Folhas Caídas a Godel, Escher e Bach e de A Cantora Careca ao Memorial do Convento. Menos o livro de Steiner, que tive de voltar a comprar.

Quando um dia, numa entrevista, perguntaram a Borges quem era ele, respondeu que era todos os livros que lera. Eu quero crer que somos não só os livros que lemos mas igualmente os que não lemos. Cavaco Silva, por exemplo, é certamente não só os livros de economia que leu mas também o provável facto, dedutível de umas célebres declarações suas, de nunca ter lido Os Lusíadas. Já o caso de Passos Coelho é mais complexo, pois, além de ser os livros que terá lido e os que não leu, é igualmente os livros, como A Fenomenologia do Ser, de Sartre, que leu mas que o seu autor nunca escreveu.

E do mesmo modo, eu serei tanto a Ilíada, Os Cantos, The Waste Land, ou até o Joanica- Puff, que li vezes sem conta, como o facto de nunca ter lido O Capitalou de só ter lido menos de metade do Ulysses; a Viagem ao Fim da Noite e não A Montanha Mágica; a Torah, boa parte do Zohar, o Tao-te-King, a Bíblia e não o Corão; Assim falava Zaratrustra e A Gaia Ciência e não (infeliz de mim que já o comecei inutilmente várias vezes) o Tratactus; Borges praticamente todo e Beckett (deveria ter vergonha de confessá-lo) muito pouco; Jules Laforgue e Charles Cros mais do que (outra confissão vergonhosa) Rimbaud; e por aí fora que a biblioteca é vasta e a vida é breve.

Às vezes pergunto-me quem raio seria eu se, em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li. Provavelmente cruzar-me-ia comigo e não me reconheceria.
Manuel António Pina

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