quarta-feira, abril 10

Uma simples folha de papel

Ontem, num programa da TV, discutíamos entre escritores e jornalistas o drama do papel em branco na máquina e, diante dele, o pobre de nós, obrigado a espremer o juízo até produzir qualquer coisa que encha as laudas necessárias e possa ir para a impressão. Acho que essa angústia existe desde que o primeiro escriba de cuneiforme, na Mesopotâmia, se afligia por uma ideia a gravar no tijolinho fresco, e depressa, antes que o barro secasse. Ou o emissário real, no Egito, diante do papiro virgem, rabiscando tentativamente um começo de hieroglifo sem saber o que contar na mensagem para o faraó.

O curioso é que nem sempre desse esforço de última hora sai um resultado pífio. Às vezes, depois de minutos e minutos de indecisão e bloqueio, brota de repente uma ideia que é um clarão, o escriba bate freneticamente na máquina, tentando forçar os dedos a uma marcha mais veloz que a dos miolos e, em pouco, ele entrega à oficina a sua melhor reportagem do mês. Quando esse branco se dá na produção de livro, não tem tanta importância. O romance espera, o conto espera. E o poema só nasce na hora que quer. O jornal, que vive à custa do cotidiano e é voraz por fatos atuais e comentários sobre esses fatos, mal se consolando com projeções sobre o futuro ou meditações sobre o passado, o jornal é que é o grande tirano. Ele é como um alto-forno de usina siderúrgica, que não pode se apagar nunca e exige dia e noite combustível, minério e a atenção infatigável dos seus alimentadores e manobreiros.

Aliás, para fazer justiça, não é propriamente o jornal o nosso tirano. O déspota implacável é mesmo o público, de quem o jornal é apenas o humilde, solícito serviçal. O público é quem dá sentença de vida e morte, o público é que boceja ou aplaude. Ele é quem recorta com amor o tópico feliz, é ele que amarrota a folha enfadonha a caminho da cesta. Nessa trêmula serventia vivemos todos os que dependemos da fera e por isso a bajulamos, hesitamos num fraseado, trocamos um verbo mais incisivo por outro mais ameno, polvilhamos com um sal de malícia qualquer flagrante inocente, descobrimos interpretações sutis ou sibilinas para o que seria apenas massudo e incolor, sem o nosso intempestivo "inuendo". Mas quanto equilíbrio e cuidados são necessários para não se transpor o frágil limite da verdade dos fatos e não se cair no perigoso terreno da invenção! Às vezes basta insinuar que o figurão sorriu antes de dar a sua resposta e se derruba todo um laborioso esforço de credibilidade em hora de crise política.

Há um ditado que diz: "O papel leva tudo". O mais certo seria dizer: "O papel (no caso, o jornal) leva a tudo". Todo o bem e todo o mal do mundo podem nascer de uma folha de diário. Um telegrama falsificado, uma frase apócrifa, já desencadearam guerras. E continuam desencadeando.
Rachel de Queiroz

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