quarta-feira, dezembro 11

Crepúsculo

David Hettinge
O sol é viril, a noite é feminina e eu não sei de onde me vem tanta incompetência de viver a hora do crepúsculo. Sim, há o colégio interno, com os eucaliptos gesticulantes, perfumes vegetais mesclados na brisa, o trisso das andorinhas e as milícias da saudade a marchar dentro de meu coração patético e pateta. Mas não creio que só isso explique o meu medo e a minha reserva. Eu, que a despeito de tudo aprendi a amar a vida, a respeitar as pessoas que se sentem naturais dentro do mundo, não gosto do crepúsculo. Sinto um princípio de náusea, uma irrealidade que me enjoa corpo e alma, uma desconfiança, uma antipatia cósmica. Andei em muitas ruas, bebi vinhos violentos em cidades estrangeiras, dei guarda a uma estrada, senti vergonhosas vontades de chorar um pouco dentro de um trem ou de um avião, conheço o timbre dos sinos antigos, vi as figuras de minhas namoradas se desfazendo entre a luz e a noite, olhos arrogantes que de repente ficavam humildes, e tenho inveja dos que sabem aonde ir na hora do crepúsculo. E nas viagens rodoviárias, quando os companheiros se calam, e a música do rádio assume o mundo, e a gente se interroga o que fazer na vida. Se entro num bar, é como um autômato incoerente, cujo coração de lata se estiola. Posso amar tudo, ser tudo, fingir-me de tudo, mas não na hora descompassada do ocaso, quando não é, e a noite é nada. Todas as janelas se cercam de grades quando ele chega, todas as paisagens como se fossem vistas e recordadas com aflição, todos os pensamentos se contraem, absurdamente, todos os sentimentos se minimizam. A terra não é nada, apenas um drama cansado e de mau gosto. Ah, meu Cesário Verde querido, meu irmão, como sou a tua alma quando contemplo a tua Lisboa ao anoitecer! Como falei contigo sobre a soturnidade, o bulício, o Tejo, a maresia, o gás extravasado perturbando, os carros de aluguel, a cor monótona, o tinir de louças e talheres, os lojistas enfadados, as varinas hercúleas num cardume negro, o peixe podre, as burguesinhas do catolicismo, o chorar doente dos pianos, o cheiro salutar e honesto a pão no forno, e Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Robinson em minha ilha crepuscular, espero o naufrágio de todos os dias. O céu tem a cor das ratazanas, a hora é esquerda, torta, e não ousa dizer o seu nome. Penso nos entardeceres lentos do Paço no tempo do rei, nos pavões imperiais de São Cristóvão, e nós todos ainda mortos, poeira imperceptível no crepúsculo.
Paulo Mendes Campos, Diário Carioca 28/11/1958

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