segunda-feira, março 30

No princípio era a palavra

Gisela Navarro Fuster
Em 1898, um obscuro escritor norte-americano, Morgan Robertson, publicou um romance intitulado “Futility or The Wreck of the Titan” ("Futilidade ou o naufrágio do Titan"). Robertson, que, na sua juventude, trabalhara em navios, como moço de cabine, conta no livro a história de um enorme transatlântico, o Titan, considerado inafundável, o qual, na sua primeira viagem, bate contra um iceberg e afunda. Quatorze anos mais tarde, um gigantesco navio de passageiros, o Titanic, bateu contra um iceberg e afundou, dando origem a um dos mais fascinantes mitos da História moderna.

Lembrei-me de Morgan Robertson na sequência da atual pandemia de coronavírus, e de uma breve troca de mensagens com o escritor português Gonçalo M. Tavares. “Por ironia trágica estou há anos a escrever um livro enorme, chamado ‘A peste nos Estados Unidos da América’, uma epopeia”, revelou Gonçalo. Quanto a mim, concluí nos últimos dias do ano passado um novo romance, “Os vivos e os outros”, no qual imagino um grupo de escritores que, na sequência de uma tempestade e, logo a seguir, de um evento apocalíptico, permanece isolado numa pequena ilha da costa oriental de África, a Ilha de Moçambique.

Gonçalo não se surpreende: “Essas coisas andam no ar”, diz. Penso o mesmo. Escritores, e criadores em geral, são simples antenas. Captam o que anda no ar.

Há alguns anos, o escritor moçambicano Mia Couto contou-me uma história de que gosto muito. O meu amigo terminara de escrever “Antes de nascer o mundo” (Companhia das Letras, 2009), romance no qual conta a história de Silvestre, um homem desiludido com a humanidade, que arrasta os dois filhos para uma região isolada porque, diz-lhes, o mundo acabou. O livro estava pronto, mas ainda não fora publicado, quando Mia recebeu uma proposta de trabalho, enquanto biólogo, que implicava uma viagem pelo interior do país. Numa aldeia remota encontrou um velho que lhe disse ser cego. Na manhã seguinte, porém, Mia encontrou-o a ler. “Mas você não me disse que era cego?”, perguntou-lhe. E o homem respondeu: “Só não sou cego enquanto leio.”
 Leitores não são ilhas. São universos em expansão
Na verdade, não tenho a certeza se a ficção adivinha o futuro, ou se, pelo contrário, o constrói. Esta é, aliás, a tese do meu novo romance. O que faço, afinal, é levar a sério a primeira frase de um dos livros mais lidos (e, provavelmente, menos compreendidos) do mundo — a Bíblia. “No princípio era a palavra”, afirma a Bíblia. Ou seja, antes do real, existia a palavra. É a palavra que cria a realidade.

Os magos, ou xamãs, em todas as culturas ao redor do globo, antes e depois da afirmação do cristianismo, acreditam no mesmo. Não por acaso, a poesia começou por ser uma disciplina da magia. A palavra evoca os deuses, dá existência a seres e a objetos. A palavra cria e descria os enredos, desenha a linha do tempo.

O momento que vivemos inquieta porque não conseguimos ver para além da montanha. Sim, sobreviveremos à pandemia. Mas sobreviveremos ao que vem depois?

Talvez a resposta já tenha sido dada, algures, por algum escritor. Também por isso, nada melhor do que aproveitar os dias de isolamento para ler. Ler, aliás, é a melhor maneira de contrariar o isolamento. Leitores não são ilhas. São universos em expansão.
Jose Eduardo Agualusa

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