sábado, março 21

No vazio

A única certeza de que não estou vivendo em uma cidade fantasma é a obra na quadra seguinte, onde trabalhadores da Prefeitura rasgam as ruas para trocar as manilhas por maiores, que absorvam a demanda de água e esgoto dos prédios gigantes que não param de brotar por aqui. Homens e máquinas labutam desde cedo até o final do dia, parecendo indiferentes à ameaça do corona vírus. Ouvir seus barulhos, de certa forma, me consola. Vêm à memória Saramago e seu Ensaio sobre a Cegueira, quando assisto à corrida aos supermercados, em desesperadas tentativas de estocar alimentos e produtos de higiene. Na volta, pelas ruas desertas, lembro de antigos seriados, como Além da Imaginação, ou filmes de faroeste com o vento fazendo rolar o mato seco. Nossa vida de agora não é muito diferente. E é real.

A manchete do principal jornal da cidade grita: Fique em casa! No celular, mensagens alarmantes dão o tom da desesperança, felizmente intercaladas por (raras) boas notícias, contando de curas e da diminuição do contágio, em outros países. Enquanto isso, cientistas se dedicam a encontrar vacinas e remédios para dar fim ao ciclo que aterroriza o planeta. Especialistas de diversas áreas divulgam recomendações preventivas, prefeitos baixam decretos proibindo situações de risco e nasce uma nova indústria de lazer, para que não enlouqueçamos na prisão domiciliar.

A esteira elétrica de anos atrás agora faz falta. Seria um bom jeito de me mexer, em vez de ficar tantas horas no sofá, dialogando com o celular ou a tevê. Ler está difícil, porque o estado de alerta me deixa dispersa, com o coração acelerado à espera do pior: cair doente ou saber que alguém da família foi contaminado.

A saudade do filho, da nora e do neto é uma roupa apertada que só afrouxa quando durmo. Mas durmo mal, acordo de madrugada, tenho pesadelos. Quando desço a escadaria para apanhar o jornal na caixa postal, sorvo o ar livre e retardo os passos, para permanecer mais tempo em contato com a natureza, especialmente se o jardim está florido e brilha o sol.

Para combater os efeitos do jejum social, providencio mimos, além de cozinhar intensamente e escrever haicais a qualquer hora, preenchendo o bloquinho quase lotado. No supermercado, comprei um molesquine (aquelas cadernetas com elástico) estampado com borboletas, para deixar ali os próximos poemas. Também trouxe uma caixa, pequena e de cores alegres, onde guardarei os haicais-postais que o correio (ainda) traz de perto e de longe, porque o quadro de avisos onde os prendia já não comporta mais nenhum.

Fiz, ainda, uma visita à seção de “alimentos saudáveis”. Dela, trouxe biscoito de polvilho com sabor de maçã e canela e um chocolate sem leite e sem açúcar (como conseguem?) Ando com muita fome de doce, e imagino que seja para compensar a solidão. Passo os dias sem pronunciar palavra, na casa deserta. Canto com o rádio, mas não é a mesma coisa que uma boa conversa…

Tento fugir do bombardeio alarmista dos noticiários e evito escutar comentários alienados ou persecutórios. Mas, nas compras, no táxi, na calçada, nos corredores do prédio, é real o risco de toparmos com palpites infelizes e o tema é sempre o mesmo, sem trégua. Recentemente, li que um grupo de psicólogos está oferecendo consultas gratuitas para quem estiver sofrendo com o isolamento forçado e busca alívio. Vou voltar à publicação e anotar o site…
Madô Martins

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