domingo, abril 5

No centenário de seu primeiro romance, Agatha Christie ganha novas traduções e tem interesse renovado

Em 1916, a inglesa Agatha Christie, então com 25 anos, abraçou um desafio: publicar um livro de mistério (e de sucesso) no qual o leitor não conseguisse identificar o assassino até o fim. Cem anos após o lançamento de “O misterioso caso de Styles”, de 1920, pode-se considerar a missão cumprida. Ao seu primeiro romance seguiram-se cerca de 80 tramas policiais, que venderam 2 bilhões de livros no mundo todo, fazendo dela a romancista mais lida de todos os tempos.

Se Agatha é uma mina de ouro, seus herdeiros sabem que precisam revitalizar a obra para mantê-la viva. Adaptações recentes para cinema (“Assassinato no Expresso do Oriente”, em 2017, e “Morte no Nilo”, que sai em outubro) e TV (“The ABC murders” e “O cavalo amarelo”) repaginam figuras como Hercule Poirot, Miss Marple e Harley Quin para o público jovem. No Brasil, mais edições e traduções da Globo Livros e da HarperCollins chegam às livrarias. Aqui, alíás, a Dama do Crime é sucesso: 2,5 milhões de exemplares vendidos nos últimos 5 anos. 


Definitivamente, está havendo um renascimento do interesse no trabalho de Agatha Christie — diz o britânico James Bernthal-Hooker, professor da Universidade de Cambridge e especialista na obra da autora. — Isso tem muito a ver com a nova onda de adaptações audiovisuais. Mas há também uma grande mudança na maneira como estamos lendo e falando sobre esses livros. Passamos a vê-los como romances e não “apenas” como entretenimento. Há um boom de estudos sobre ela nas universidades

Esqueça o estereótipo do leitor de Agatha Christie: uma pessoa de idade lendo sobre crimes em uma cadeira de balanço. Pelo engajamento nas redes sociais e pela alta procura em eventos voltados para os mais jovens, como a Bienal do Livro, as editoras perceberam o seu apelo entre as novas gerações.

Em fanfics na internet, o público teen reinventa o universo da britânica, criando suas próprias teorias e conexões com cenários e personagens — incluindo, claro, o detetive Poirot, sua principal criação.

— Na nova versão do “Assassinato no Expresso do Oriente”, o Poirot do ator Kenneth Branagh é mais físico, luta, uma novidade — observa Caroline Chang, editora da L&PM, que viu sua edição do clássico quintuplicar as vendas após a estreia do filme. — Tudo isso ajuda a renovar o imaginário em torno da obra.

Daí a importância de novas edições, com projetos gráficos e traduções atualizadas. Em 2019, a Globo Livros lançou novas traduções de “M ou N” e do centenário “O misterioso caso de Styles”. Mês passado fez o mesmo para “Assassinato no campo de golfe”. 

— Nossas edições contam com novo projeto gráfico voltado para o público mais jovem mas que, ao mesmo tempo, dialoga com o público adulto — diz Mauro Palermo, diretor da Globo Livros.

Gerente editorial da HarperCollins, Alice Mello concorda que os leitores da britânica abrangem uma amplitude geracional impressionante. Em fóruns de discussão, ela vê fãs de 13 anos trocando opiniões com os de mais de 60.
Em março, para marcar o centenário de carreira de Agatha, a editora iniciou uma renovação nos 80 títulos de seu catálogo. Só no último mês já saíram “Punição para a inocência”, “O Cavalo Amarelo”, “Um corpo na biblioteca” e “Assassinato no Expresso do Oriente”. A escolha de um jovem time de tradutores (a caçula Luisa Geisler tem 28 anos) não foi por acaso. 

— Agatha conquista leitores que terão a obra dela como companhia por uma vida inteira — diz Alice.

É o caso de Tito Prates, um dos dois únicos embaixadores oficiais de Agatha no mundo — título que lhe foi atribuído por ninguém menos do que Mathew Prichard, neto e herdeiro da autora. Ele começou a ler a Dama aos 11 anos, por influência de uma tia. Com 18 anos já absorvera a obra toda. A obsessão continuou ao longo da vida: hoje, aos 54, é o único biógrafo autorizado de Agatha em língua portuguesa (publicou “Agatha Christie from my heart: uma biografia de verdades” em 2016).

Como embaixador, ele promove a obra entre os mais jovens, graças a eventos como o ciclo de debates “100 anos de Romance Policial no Brasil e de Literatura de Agatha Christie”, que acontece em junho no Rio e em outras cidades ao longo de 2020. A convivência entre gerações é “perfeita”, segundo ele.

— Os novos aprendem e pedem dicas aos veteranos — diz Tito. — Tivemos caso de adolescente de baixa classe e de família evangélica que só deixava ele ler a Bíblia que acabou viajando o país todo com despesas pagas pelos amigos que conheceu no grupo.

>Assim como muitos agathamaníacos pelo mundo, Tito dedica metade do seu ano à sua autora favorita. Sua fixação vai além dos livros: ele também consome produtos, como as roupas do Poirot que usará no International Agatha Christie Festival, evento bienal onde muitos participantes fazem cosplay (Tito já está deixando o bigode crescer pontiagudo igual ao do detetive). Uma prova de que, mais do que uma escritora, a Dama do Crime é hoje uma marca, como Marvel ou Disney, que abrange vários produtos.

— Agatha Christie é uma instituição — sentencia o acadêmico Bernthal-Hooker. — Ela não vai acabar nunca.

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