domingo, janeiro 17

A biblioteca desaparecida

Para qualquer amante de livros e apaixonado cultor do nobre vício da leitura, a Biblioteca de Alexandria (a “Grande Biblioteca”) faz as vezes de mito fundador de um culto. Almejada por Alexandre, foi criada no século IV a. C. por Ptolomeu, o primeiro dos reis do Egito após a desintegração do império alexandrino, na cidade que leva o nome do seu fundador. A Biblioteca de Alexandria sobreviveu a ataques e depredações talvez uns sete séculos para se eclipsar durante o longo declínio do Império romano e ser completamente destruída, já no período de domínio muçulmano. Chegou a reunir dezenas de milhares de rolos de papiro e a lenda diz-nos que foi devorada por um incêndio ateado pelas tropas de Júlio César, no século I antes da nossa era, embora os testemunhos coevos sejam omissos e haja notícia de que, possivelmente danificada, sobreviveu mais quatro ou cinco séculos. Tornou-se modelo e referente de todas as bibliotecas que se alastraram nos séculos seguintes pelo mundo helenístico e romano.

Não admira, por isso, que a classicista e escritora espanhola Irene Vallejo a tenha tomado como eixo narrativo da sua investigação sobre as origens dos hábitos de leitura no mundo ocidental ("O infinito num junco", 2020), esboçadas nos vestígios que nos ficaram da Grécia arcaica, mas que só adquirem consistência institucional com a criação da Biblioteca de Alexandria. O relato é vertiginoso e não poucas vezes arrebatador, a prosa elegante e profundamente documentada, salpicada por episódios e anedotas que nos falam tanto das técnicas de reprodução dos textos originais quanto das aventuras em que se envolvem os agentes de disseminação do livro e da leitura. Além de investigadora aplicada, Irene Vallejo é também uma exímia contadora de histórias, talvez porque nela palpita a centelha da ficcionista que também é.

O começo do livro é paradigmático da “maneira” da autora: conta-nos os trabalhos e adversidades por que passavam os emissários de Ptolomeu (na realidade, dos sucessivos Ptolomeus), para encontrarem livros (rolos de papiro) que pudessem adquirir a qualquer preço para a biblioteca real de Alexandria. Vallejo chama-lhes “caçadores de livros” e a descrição das suas viagens lembra as sucessivas devassas de Indiana Jones à procura de absolutos. No fundo, talvez a acumulação fosse a principal preocupação dos mecenas reais do Egipto: no mundo helenístico, a cultura e as artes tinham-se tornado um símbolo de poder e de prestígio. Conta-se que, de visita à Biblioteca, Ptolomeu II interrompeu a exposição de Demétrio de Faleros sobre o conteúdo reunido nos rolos de papiro, perguntando: “Mas quantos rolos é que já temos?” Palpitava nele, está claro, a compulsão ilimitada do colecionador, na qual muitos amantes de livros se reconhecem.


Pelas descrições que nos chegaram, não parece que a Grande Biblioteca ptolomaica, por extensa que fosse, constituísse em si mesma um statement arquitetónico (mas as grandes bibliotecas modernas, em Paris ou Alexandria, são-no, evidentemente): fazia parte do Museu e eram-lhe reservadas áreas relativamente modestas num grande edifício que era, na sua maior parte, dedicado ao culto dos deuses pagãos. A autora atribui-lhe, no entanto, um papel fundacional na acumulação e transmissão do saber (literário, filosófico, científico) no mundo antigo. Mas a mim interessa-me mais o mistério que envolve o seu desaparecimento, a escassez dos (ou contradição entre) elementos testemunhais da sua existência (o silêncio de Estrabão sobre a Biblioteca diz-nos o quê?), do seu declínio e da sua ruína, o enigma do alegado incêndio que lhe marca, erradamente, a morte.

É praticamente impossível reconstituir o arco temporal da vida da Biblioteca de Alexandria, e do seu declínio, como se apenas a inevitabilidade de uma catástrofe pudesse assinalar-lhe a transitoriedade. Nem sequer sobre o acervo há consenso: no século II a. C., em pleno apogeu ptolomaico, Aristeias fala de 200 mil rolos e Aulo Gélio de 700 mil; mas Epifânio, cinco séculos depois, refere apenas 54.800. Simbolicamente, o linchamento de Hipátia, “estrela imaculada da sabedoria”, em 415, assinala o seu fim conhecido.

Porém Hipátia pode ter sido apenas o último elo de uma cadeia de sábios residentes que há muito se tinha quebrado, à medida que a Biblioteca definhava sob a pressão agressiva e totalizante do cristianismo tornado religião oficial do Império. Não por acaso, a destruição final dos livros da Biblioteca foi ordenada dois séculos depois pelo muçulmano Saladino, como se a Biblioteca se tivesse tornado um alvo a abater pelas religiões monoteístas. Irene Vallejo escreve que “graças a Alexandria tornámo-nos extremamente estranhos: tradutores, cosmopolitas, memoriosos.” Tudo coisas que as teocracias abominam.

É claro que a autora não pode inventar estatísticas onde elas não existem, nem efabular sobre listas cujas lacunas a historiografia e a arqueologia não foram capazes de preencher. Quaisquer que sejam os seus talentos narrativos, este é um livro de história do livro e da leitura, não uma ficção, mesmo que aqui e além deparemos com apontamentos autobiográficos que “atam” a investigação historiográfica à nua humanidade da sua autora. Mas, para mim, a Biblioteca de Alexandria é sobretudo um mito fecundo, uma referência remota sobre a qual é possível construir narrativas sobrepostas, que enunciam as possibilidades alternativas da sua existência real. Mania de ficcionista, já se vê.

Muito a contragosto, não posso deixar de anotar uma referência negativa à edição portuguesa (Bertrand, 456 pp., 19,90 euros). Para lá de numerosas imprecisões que uma boa revisão podia ter corrigido, os tradutores não se deram ao trabalho de procurar os títulos das edições portuguesas das obras citadas na Bibliografia da autora, pelo que se limitaram a fazer copy/paste da edição de partida: além dos títulos originais, só nos aparecem os das traduções espanholas. Ora, o leitor ganharia em saber que "El giro - De cómo un manuscrito olvidado contribuyó a crear el mundo moderno", de Stephen Greenblatt, se encontra publicado em versão portuguesa com o título "A grande mudança", desde 2012. A exemplo desta, muitas das obras aí citadas têm edição disponível em Portugal. Neste aspeto, pelo menos, a qualidade do original de Irene Vallejo merecia melhor.

"O infinito num junco" mereceu os maiores elogios de escritores e grandes leitores, e não serei eu a desalinhar neste coro de encómios, por força do prazer que me deu a sua leitura. Ao lado deste, ocorrem-me outros títulos com tema afim, que com ele podem ombrear ("Uma história da leitura", de Alberto Manguel, "Libraries in the Ancient World", de Lionel Casson, "A History of Reading", de Steven Roger Fischer); mas este é seguramente um dos melhores do género e um dos livros mais estimulantes que li no ano que agora termina.

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