quinta-feira, janeiro 14

A pobre da minha mãe

Mamãe sempre teve uma pobre, isto é, uma pessoa de poucos recursos que passava periodicamente lá em casa para comer, pegar algumas roupas usadas, algum dinheiro, essas coisas. Dona Zita foi nossa pobre durante anos, mas agora estava de mudança para o interior. Para não deixar mamãe sem nenhuma pobre efetiva, ela teve o cuidado de arranjar a Mulher do Esôfago.

Todos nós percebemos imediatamente, quando a Mulher do Esôfago chegou lá em casa, que ela era muito melhor do que Dona Zita para ser a pobre da mamãe. Era muito mais feia e tinha ainda a vantagem de ser muito mais pobre. Comprida, esquelética, tinha a cabeça grande, de forma que parecia um prego enferrujado. Os peitos sumidos, traseiro achatado, nada nela lembrava uma mulher.
Fora operada três vezes do esôfago e usava uma sonda perto do gogó. Por causa disso nós a batizamos logo de Mulher do Esôfago. Mas isto era apenas entre nós. Na sua presença usávamos o nome certo: Nailda. A pobre da minha mãe tinha a obrigação de passar somente aos sábados e sempre na parte da manhã, instruída por Dona Zita; a Mulher do Esôfago procedia desde o princípio corretamente. Chegava, cumprimentava, sentava-se num tamborete na área de serviço e ficava quietinha, esperando. Enquanto mamãe providenciava roupas, sacola de alimentos e uns trocados, eu me encarregava do café com leite, sem pão ou qualquer outra coisa que fosse sólida, pois a Mulher do Esôfago não se alimentava pela boca. Ela usava uma sonda instalada no pescoço. Quando eu chegava com a caneca de louça, ela tirava o funil da bolsa e punha-o na borrachinha da sonda. Então eu derramava o café com leite no funil e ouvia, logo em seguida, seu estômago fundo ronronar de satisfação.

A Mulher do Esôfago frequentou nossa casa durante uns dois anos. E foi num sábado de Natal que ela não apareceu pela primeira vez. Mamãe, que havia preparado uma sacola especial, ficou preocupada o dia todo e, antes que nosso Natal se estragasse, papai pegou o carro e foi à Cidade Ozanã. Sabíamos vagamente que a Mulher do Esôfago morava lá. Sim, disseram, ela havia tido um problema: entupimento da sonda ou algo parecido. Fora levada três dias atrás para a Santa Casa de Misericórdia. Papai passou lá. Ela já havia recebido alta. Quando papai voltou, a Mulher do Esôfago estava em casa, sentada no seu tamborete, na área de serviço. Terrivelmente abatida, parecia um cadáver.

Mamãe conversava com ela, dizia: “Você não devia ter saído do hospital. Você ficou louca, dona Nailda”. E ela, com sua vozinha esganiçada, explicava que os médicos tinham-na posto pra fora. “Todo mundo no hospital me acha antipática. Ninguém gosta de mim. Nem os outros doentes. Nem mesmo as irmãs de caridade”.

Mamãe queria que ela passasse o dia lá em casa, descansasse um pouco, depois papai a levaria de carro. A Mulher do Esôfago insistiu que estava tudo bem, ninguém se incomodasse, nós éramos bons demais para ela. Que Jesus, filho de Deus, nos protegesse.

Depois de ser alimentada mais uma vez pelo novo funil, a Mulher do Esôfago pegou sua sacola – dessa vez com o peso do Natal – e foi embora. O esqueleto ambulante, meio tombado de lado, andava com dificuldade. Prometeu pra mamãe que voltaria no sábado seguinte. Não voltou. Alguns dias depois, tivemos a notícia da Mulher do Esôfago: fora encontrada morta na rua. 
Wander Piroli

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