sexta-feira, setembro 9

O poeta Menelau

Ainda não conhecia o fundador da Confraria dos Poetas de Zurubundanga. Exercia o mandato de presidente pela décima vez, sempre eleito por aclamação. Também com ele a regra era seguida à risca, só era poeta quem pertencesse ao ilustre quadro de membros efetivos da confraria. Quem não tivesse o salvo-conduto, não se imaginasse como um verdadeiro poeta.

Era de estatura pequena, pescoço grosso, cabeça com os cabelos ralos. Dentuço e nervoso. Tinha o sestro de sacudir a cabeça várias vezes quando estava dizendo um poema. Era amigo do prefeito, para quem dedicava sempre dois ou três poemas no dia de seu aniversário. Assinava uma coluna semanal no Diário de Zurubundanga, ali no recanto das letras comentava livros de poesia, apenas os volumes dos ilustres confrades. Ficava contente, ali era um espaço ideal para publicar seus comentários literários ou poesia de dez a vinte estrofes. O recanto não deixava de lhe oferecer uma boa oportunidade para disseminar sua glória, quase dizia vaidade, o que não calhava com seus brios de poeta talentoso, como gostava de dizer para ele mesmo.

Com ele só os poemas longos, curtos como o haicai nem pensar. Detestava essa coisinha insignificante, de poeta minimalista, sem inspiração, habilidade no estro, alienado, cultor de fórmulas orientais para compor o verso nanico. De outras gentes, que nada tinha a ver com a magnífica poesia cultivada por ele e os poucos leitores, que eram os mesmos integrantes da confraria.

Quando se dirigisse a ele, só admitia que fosse chamado de poetão Menelau. Vá lá, poetastro, nada de poeta ou poetinha, isso não condizia com a grandeza de seu estro, que tinha como marca supimpa as rimas mais instigantes. Por exemplo, coração com mamão, tesouro com besouro, presepada com batucada, cachoeira com besteira, facão com anunciação, porrete com macete, camaradagem com garagem, alegria com pirataria, chulé com bicho do pé.

Num dia de calor do verão, estava abastecendo o carro com gasolina no posto. De súbito apareceu aquela cabeça inquieta na janela do motorista, os olhos rutilantes como se quisessem saltar do rosto ossudo.

Disse com entusiasmo:

– Soube que você publicou um livro de poesia na França.

– Sim – eu disse.

Emendou sem pestanejar:

– Mas isso não é a glória. Não é trunfo nem motivo plausível para que você se ache um verdadeiro poeta.

Meio assustado, disse que a glória não me preocupava. A imortalidade era uma fórmula usada pelos membros de uma academia, como maneira de querer superar a indesejada, o que não é possível. Ela é a coisa que temos de mais certa.

– Você precisa aparecer lá na confraria dos poetas da terra, retornou e insistiu na lembrança. – Precisa se filiar ao grupo. Se não tiver em nosso meio formado por imortais, nem se considere poeta.

E recitou o que ele chamava do mais recente poema de sua imbatível inspiração. Uma zorra com versos que rimavam coração com cheiro de manjericão, maneira apurada com vida galharda, embriaguez serena na pele morena, e por aí seguia aferrado à sonoridade das rimas. Informou que os versos candentes desse poema ou o que fosse lá o que fosse tinham inspiração na sua bela Aurora, mulher incrível, companheira e eterna musa.

– Quer ouvir outro poema?

Comecei a suar, apressando-me em ligar o carro para me livrar das investidas poéticas do Menelau. Para sorte minha, ouvi o frentista dizer, no outro lado, para que ele tirasse seu carro, que o tanque já estava cheio. Ele não deu ouvido. Começou a dizer outro poema, apesar de meu conselho para que fosse tirar o seu carro, o frentista já estava irritado de tanto pedir isso, tinha gente na fila querendo abastecer o veículo. Foi o que me salvou. O poeta Menelau, o grande, antes que me esqueça, saiu chateado com aquela inconveniente interrupção à sua elevada dicção para soltar a verve que emergia decidida, naquele instante, de um encontro não marcado por ele com um simples fazedor de versos.

Ainda lembrou antes de sair:

– Apareça lá na confraria dos poetas da terra.

E arrematou com o peito cheio e o rosto contente:

– Junte-se a nós e vá em frente como um verdadeiro poeta.
Cyro de Mattos

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