terça-feira, janeiro 31

Saltar para o outro lado

Nós estávamos sentados naquela mesa, nervosos, tristes, e descobrimos um novo mundo que nos fez esquecer aqueles sentimentos
Orhan Pamuk

A psique é extensa e nada sabe
Sigmund Freud

Portanto, no início está a recepção e a voz. Ler, apropriar-se dos livros, é reencontrar o eco longínquo de uma voz amada na infância, o apoio de sua presença sensível para atravessar a noite, enfrentar a escuridão e a separação. Como para essas crianças no hospital, que dizem ouvir, enquanto dormem, a voz da pessoa que leu histórias para elas durante o dia. Ou para Florence, em missão humanitária em Ruanda, que enfrenta, dia após dia, o sofrimento dos sobreviventes do genocídio, reacendendo o luto que ela mesma conheceu. Quando está no quarto de hotel, ou à noite, antes de dormir, ela lê: “Nunca estive tão só como então. Quando não tinha mais livros, estava perdida. Comprei um livro, retomei o prumo. Era alguém, uma presença viva, como quando à noite meus parentes me telefonavam. Uma voz humana. Era físico, uma presença. Eu estava como que com um amigo, uma amiga, e já não esperava”.

Como escreve Pascal Quignard: “Diz-se que os dois primeiros medos, pré-humanos, estão relacionados à solidão e à escuridão. Nós amamos poder fazer surgir à vontade um pouco de companhia e de luz artificial. São as histórias que lemos e que à noite trazemos entre as mãos”. Ou Variam Chalámov: “[...] os livros são também um mundo que não nos trai nunca”. Mesmo sozinhos, o interior de nós mesmos estaria ocupado; ao longo da vida inteira, é possível se fazer acompanhar.

Ler é também tornar-se autônomo: o livro é feito de signos, de linguagem, do registro simbólico que os psicanalistas situam mais do lado do pai, de uma terceira instância separadora. E o ato de chegar à leitura é, às vezes, descrito como a incorporação de algo que é próprio da mãe, em que o pai, ou o ser amado pela mãe, aquele com quem ela sonha, sem dúvida não está ausente. E dizer o quanto, para o psiquismo, aquilo que é apropriado tem um status complexo, heterogêneo.

Michèle Petit, "A arte de ler: ou como resistir à adversidade"

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