terça-feira, outubro 17

A rainha dos erros

Quando ela nasceu, os problemas foram a idade e a pressão; seus pais já estavam bem velhos para ter filhos, e, após horas de batalha e uma cirurgia, o corpo de sua mãe ficou destroçado, morto. O pai, Waldek Lesciuszko, ficou destroçado, vivo. Ele criou a filha da melhor forma que pôde. Condutor de bonde, tinha muitas qualidades e peculiaridades, e as pessoas o comparavam não ao próprio Stálin, mas a uma estátua dele. Talvez fosse o bigode. Talvez outra coisa. Podia ser a rigidez do homem, ou seu silêncio, pois era um silêncio extraordinário.

Na vida privada, contudo, havia mais detalhes. Ele tinha um total de trinta e nove livros, dois dos quais eram sua obsessão. Provavelmente porque cresceu em Estetino, próximo ao mar Báltico, ou porque adorava mitologia grega. Qualquer que fosse a motivação, Waldek sempre retornava a eles — dois épicos em que os personagens abriam caminho pelo mar. As obras ficavam na cozinha, dispostas no meio de uma estante empenada e comprida, arquivadas na letra H:

Ilíada. Odisseia.


Enquanto outras crianças pegavam no sono com histórias de cachorrinhos, gatinhos e pôneis, Penélope cresceu com o rápido Aquiles, o engenhoso Odisseu e todos os demais nomes e epítetos.

Havia Zeus, o amontoador de nuvens.

Afrodite, amante do riso.

Heitor, o provocador.

E sua xará: a paciente Penélope.

O filho de Penélope e Odisseu: o inteligente Telêmaco.

E um de seus eternos favoritos:

Agamenon, rei dos homens.

Ela passou muitas noites em claro na cama, viajando pelas imagens de Homero e suas inúmeras repetições. Quantas vezes os exércitos gregos lançaram suas embarcações no mar vinoso, no mar ruidoso? Velejavam pela aurora de dedos róseos, e a garotinha sossegada se encantava, seu rosto pequenino se inflamava. A voz do pai sacolejava em ondas cada vez menores, até que ela finalmente caía no sono.

Os troianos poderiam retornar no dia seguinte.

Os aqueus, com seus cabelos compridos, poderiam lançar e relançar suas naus ao mar, para conduzi-la em outra noite, mais uma vez.
Markus Zusak, "O construtor de pontes"

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