terça-feira, outubro 10

Espera para nada

Um silêncio estranho reinava sobre a aldeia. Naquela época do ano havia muito a ser recolhido na praia, mas não havia ninguém à vista na areia. Mesmo as crianças sentiam o humor dos adultos e não estavam brincando e correndo pela trilha. Depois de esconder todo o arroz e as outras coisas nas montanhas, os habitantes da aldeia passaram os dias enfurnados em casa, contendo a respiração. A mãe de Isaku cuidou dos ferimentos enquanto secava grãos vindos da outra aldeia ou tecia panos no tear.

Isaku passou o tempo reparando seu material de pesca, e ocasionalmente olhava pela porta dos fundos para a trilha que seguia até a aldeia vizinha, ou para o mar. Se os homens da agência de transporte viessem, seria ou pelo passo nas montanhas ou de barco pela costa. Tinham falado em colocar vigias perto do passo e nos promontórios, mas desistiram da ideia porque, como alguém observara, se eles percebessem os vigias, isso iria levantar suspeitas.

Isaku ouviu os homens da aldeia discutindo como seria a punição. Ficou aterrorizado. Falaram sobre pessoas sendo chicoteadas, depois arrastadas e puxadas por uma corda e então crucificadas de cabeça para baixo e espetadas com lanças até as entranhas caírem. Falaram sobre pessoas sendo cortadas com uma serra antes de ser crucificadas. Se descobrissem que tinham roubado a carga de um navio e espancado o capitão até matá-lo, sem dúvida o destino de todos seria similar a isso.

Apenas uma trilha levava para fora da aldeia, e para chegar à aldeia vizinha era preciso seguir as trilhas mais estreitas cortadas no coração das montanhas, passando por um vale e picos pelo caminho. Isaku havia ido até a aldeia vizinha pela primeira vez quando seu pai partira para a servidão, e a sensação de poder que lhe causara fora suficiente para deixá-lo zonzo. Fileiras de casas e lojas vendendo todo tipo de coisa, assim como construções de dois andares para acomodar viajantes. As ruas eram cheias de gente, e ele vira coisas das quais tinha apenas ouvido falar mas nunca vira antes, tais como um boi, que passara diante dele com carga amarrada nas costas. No porto ele vira navios de carga e de barcos de pesca. Não parara de se mover por um segundo, olhando tudo de forma incansável, até ficar exausto.

Tinham passado apenas uma noite no chão de terra da casa do intermediário, mas Isaku nunca iria se esquecer da sublime tranquilidade que experimentara quando atravessara novamente o passo nas montanhas e avistara as casas de sua aldeia lá embaixo. Estava certo de que nunca poderia viver em outro lugar que não fosse aquele.

No momento em que ouviu dizer que os agentes da transportadora estavam procurando um navio desaparecido, a aldeia vizinha passou a representar para Isaku tudo que era misterioso e assustador. A vila vizinha ficava localizada na mesma ilha e pertencia à vasta extensão de terra do outro lado do mar. Cada aldeia tinha seu próprio código de leis, passado adiante através das eras.

Raro como era, via-se o aparecimento de O-fune-sama sob a mesma luz dos inesperados cardumes de peixes que às vezes apareciam perto da costa, ou quantidades especialmente grandes de cogumelos ou legumes da montanha encontrados na floresta. O-fune-sama era parte dos presentes oferecidos pelo mar, e seu aparecimento acabara de salvar as pessoas da aldeia da fome. Para a aldeia de Isaku, o naufrágio de O-fune-sama era a coisa mais alegre possível, mas para outras pessoas, em outros lugares, tais como a aldeia vizinha, era algo ruim e que merecia a punição máxima. Mas se O-fune-sama não abençoasse sua praia, a aldeia havia muito teria deixado de existir, e a baía não seria mais que uma área de mar rodeada por pedras. Seus ancestrais haviam vivido ali, e eles, por sua vez, só podiam sobreviver graças a O-fune-sama.

Diziam que as almas dos mortos da aldeia iam para longe pelo mar e que, com o tempo, voltariam para encontrar abrigo no útero de uma mulher grávida. Não havia nenhum lugar para onde elas poderiam retornar além da aldeia. Se retornassem para um lugar onde as regras fossem diferentes, onde eventos festivos fossem considerados crimes, o resultado não seria bom. Se Isaku viesse a constituir sua própria família, sabia que teria de ir até a aldeia vizinha vender sal e outras coisas, mas estava determinado a evitar tais viagens. Queria permanecer na segurança da aldeia onde seguiam princípios fixos de como viver.

Às vezes ele pensava sobre sua própria morte. Seu corpo sendo queimado e os ossos enterrados no chão, sua alma deixando a aldeia e seguindo por cima da água, realizando uma longa jornada antes de alcançar o lugar longínquo no mar onde as almas dos outros mortos da aldeia estariam esperando. Os espíritos tinham uma moradia no fundo do mar onde tudo era claro e brilhante. Densos campos de algas marinhas balançavam como bosques de árvores, e todo tipo de mariscos e outras conchas coloridas se agarravam às pedras, brilhando como madrepérola.

Cardumes de peixes pequenos, as escamas prateadas brilhando enquanto nadavam., viravam ao mesmo tempo quando o líder mudava de direção, da mesma forma que um grupo de flocos de neve dançando no ar.

O fundo do mar era sempre calmo e a temperatura da água não mudava. As almas mortas pareciam águas-vivas em suas vestes transparentes, e tinham um brilho saudável nos cabelos. Sempre sorriam e nunca eram admoestados. Estavam no estado de profunda serenidade induzido pela morte. Ali ele viu a avó, de quem tinha apenas uma vaga lembrança, e Teru, sua irmãzinha que morrera dois anos antes. As pessoas mais atrás deviam ser seus ancestrais.

Ele se moveu até eles e parou junto de Teru. Antes que se desse conta, ele também foi envolto em vestes transparentes, e sua face tinha sempre um sorriso gentil. Ele se sentiu agradavelmente aquecido dentro daquela roupa.

Às vezes, alguns espíritos se afastavam, levados por aqueles que tinham ficado para trás. Eram as almas voltando para a aldeia para reencarnar no útero através da união sexual de um homem e uma mulher. E quando a reencarnação ocorreria? Muito provavelmente, um longo tempo depois da morte.

Ele não tinha dúvidas de que ele, também, era um espírito reencarnado no útero de sua mãe. Acreditava que a moradia das almas mortas lá longe no mar não era apenas imaginação, mas algo que podia visualizar tão claramente porque se tratava de um lugar do qual ele uma vez fizera parte.

Não tinha medo de morrer, especialmente porque acreditava que havia um lugar onde se vivia em paz depois da morte. Mas, se fosse levado para longe e morresse em um lugar distante, achava que seria difícil para seu espírito conseguir alcançar o santuário das almas mortas de sua aldeia. Sem dúvida, seu espírito seria condenado a um inferno cheio de almas de estranhos com expressões tristes.

Se os homens da agência de transporte viessem até a aldeia e descobrissem que os habitantes tinham roubado a carga de um navio naufragado, eles seriam presos e mortos, não poderiam saborear a tranquilidade depois da morte. Isaku orou para que os homens da agência de transporte nunca aparecessem.
Akira Yoshimura, "Naufrágios"

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