quarta-feira, dezembro 27

O comerciante

É possível que algumas pessoas tenham compaixão cie mim, mas eu não percebo nada. Minha pequena loja me enche de preocupações que me doem dentro da fronte e das têmporas, mas sem me oferecer a perspectiva da satisfação, pois a loja é pequena.

Com antecipação de horas preciso tomar providências, manter alerta a memória do empregado, advertir contra erros que eu temo e levar em conta, numa temporada, as modas da seguinte, não como elas irão dominar entre as pessoas do meu círculo, mas entre as populações inacessíveis do campo.

Meu dinheiro está nas mãos de pessoas estranhas; a situação delas não pode ser clara para mim; o infortúnio que poderia atingi-las eu não sou capaz de pressentir, como é que poderia evitá-lo? Talvez elas tenham se tornado pródigas e deem uma festa no jardim -de um restaurante e outras ainda permaneçam um pouco na festa, na sua rota de fuga para a América.

Quando pois ao anoitecer de um dia útil a loja é fechada e de repente vejo diante de mim horas nas quais não poderei trabalhar cm nome das necessidades ininterruptas da minha loja, minha excitação — despachada de manhã, previamente, para bem longe — irrompe em mim como a maré que retorna, mas não se detém e me arrasta consigo sem objetivo.

No entanto não tenho de modo algum a capacidade de usar esse humor e só posso ir para casa, pois tenho o rosto e as mãos sujos e suados, a roupa coberta de nódoas e pó, o boné de serviço na cabeça e as botas arranhadas pelos pregos dos caixotes. Caminho então como sobre ondas, estalo os dedos das duas mãos e acaricio o cabelo das crianças que vêm em minha direção.

Mas o caminho é curto demais. Logo estou cm minha casa, abro a porta do elevador e entro.

Vejo agora que de repente estou só. Outros, que têm de subir pelas escadas, cansam-se um pouco ao fazê-lo, precisam esperar com os pulmões respirando às pressas, até que venham abrir a porta do apartamento, nesse momento eles têm um motivo para irritação e impaciência, entram então na antessala, onde penduram o chapéu e só quando atravessam o corredor, ao longo de algumas portas de vidro, e penetram no próprio quarto, é que estão sozinhos.

Mas estou só logo no elevador e apoiado nos joelhos olho para o estreito espelho. Quando o elevador começa a subir eu digo:

— Fiquem quietos, recuem, querem entrar na sombra das árvores, atrás dos cortinados das janelas, dentro do caramanchão?

Falo com os dentes e os corrimões da escada escorregam pelas placas de vidro leitoso Como água que se precipita.

Partam voando daqui; que as asas que eu nunca enxerguei os transportem para o vale da aldeia ou a Paris, se o impulso é para lá. Mas desfrutem a vista da janela quando das três ruas chegam as procissões que não se desviam umas das outras, se embaralham e deixam o espaço livre outra vez entre as últimas filas. Acenem com os lenços, fiquem horrorizados, comovidos e elogiem a bela senhora que passa. Atravessem o riacho pela ponte de madeira, acenem com a cabeça aos meninos que se banham e espantem-se com o hurra! dos mil marinheiros no navio de guerra distante. Persigam o homem insignificante e quando o tiverem atirado num vão de entrada, assaltem-no e vejam, cada qual com as mãos nos bolsos, como ele segue triste pela rua da esquerda. Galopando dispersa nos seus cavalos, a polícia refreia os animais e os força a recuar. Deixem-na, as ruas vazias a farão infeliz, eu sei. O que foi que eu disse?

— Já estão cavalgando aos pares, lentos nas esquinas e a toda nas praças.

Aí tenho de descer do elevador e mandá-lo de volta para baixo, tocar a campainha e a empregada abre a porta enquanto eu cumprimento.

Franz Kafka, "Contemplação"

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