sexta-feira, dezembro 29

O futuro

Certa feita, Astrud Gilberto, João Donato e eu vínhamos de um estúdio de gravação, em Nova Iorque, quando passando por uma rua vimos uma cigana num sobrado e resolvemos consultá-la. Donato foi o primeiro a sentar-se frente a ela que, tomando-lhe a mão, disse: "Vou ler o seu passado." E Donato, com aquele ar perdido e olhar esgazeado, retrucou: "Não, gipsy, o passado eu já conheço. Fale do futuro." Desconcertada, a cigana voltou-se para nós e confidenciou: "Ele é maluco..." Claro. Só a loucura poderia ser tão lúcida. De uma tacada, Donato descartara o passado. Quantos, para exorcizá-lo, necessitam recorrer à psicanálise ou mesmo às autobiografias...

Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."

Conceitos como passado, saudade, levam a intermináveis reflexões. Por exemplo, o que o poeta teria querido dizer com "saudade da vida"? Acredito que não se referisse a “toda a vida", mas sim à vida como um todo. Concordo que tudo que já aconteceu, na vida, serviu como aprendizado, acrescentou, valeu. Mas, nem sempre, tudo foi gratificante. Nesse caso, para mim, ter saudade de alguma coisa ou de alguém é, exatamente, de como essa coisa ou essa pessoa ficou na nossa memória. E, nesse sentido, mais uma vez, a palavra saudade representa uma contribuição enriquecedora de nosso idioma. Porque, no meu entender, saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o fez em outros tempos. Feito aquelas músicas, filmes ou amores antigos que, por mais que os tenhamos apreciado, sempre se ressentem ante uma revisão.


Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.

É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.

Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.

Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Carlos Lyra

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