terça-feira, dezembro 19

Colecionar livros

Ser colecionador de livros não é comprar tudo que aparece pela frente.

O colecionador de verdade entra muitas vezes num sebo atrás do outro e sai de mãos vazias, por orgulhoso amor à arte.

Ele reconhece, numa prateleira de livraria a três metros de altura, uma lombada que não vê há trinta anos, e aponta: “Aquele ali”.

Ele completa uma coleção específica (uma Futurâmica, uma Vagalume, uma Os Audazes) e continua em busca, para a lenta substituição dos volumes mais estragados por outros mais apresentáveis.

Ele vai passando de ônibus num bairro desconhecido, vê de relance uma livraria, salta, entra, e sai de lá com uma preciosidade caída como um raio em céu azul.

O colecionador de verdade olha para suas estantes e considera a sério a possibilidade de começar a guardar livros no corredor do prédio, no elevador.

Ele ouve a pergunta-padrão: “Você já leu esses livros todos?” e responde: “Sim, agora estou relendo”.


Ele tem o mesmo livro em cinco versões diferentes: uma 1ª. edição, uma cópia autografada pelo autor, um exemplar para ler metendo a caneta, outro com uma capa que vou-te-contar, e uma edição eletrônica para fazer buscas rápidas.

Ele tem a ousadia de botar dois livros improvavelmente lado a lado na estante, e sabe que isso é uma pequena obra de arte conceitual.

Ele separa para doação 200 livros inúteis, e no dia seguinte traz metade deles de volta às estantes, porque foram reavaliados e achados imprescindíveis.

O colecionador não consegue esquecer até hoje o livro raríssimo e caríssimo visto num sebo e deixado para comprar no dia seguinte, quando, é claro, já não havia mais sinal dele.

Ele tem uma primeira edição rara, toda estropiada e dilacerada, e não sabe se encaderná-la é um benefício ou um sacrilégio.

Ele para numa calçada onde há uma lona coberta de livros, avista uma preciosidade largada por entre o resto, pensa: “Até 150 reais eu pago”, pergunta quanto é, e o cara responde com um muxoxo: “Tá velhinho... me dá 1 real.”

O colecionador encontra no sebo, numa daquelas prateleiras rente-ao-chão, um livro estranho, ininteligível, de autor ignorado, sobre tema controverso, folheia, fica perturbado, leva pra casa, e meses depois esse livro torna-se a única vítima de um inusitado e nunca repetido ataque de cupins.

Ele viaja pelo mundo e tem o hábito de, em cada cidade por onde passa, comprar pelo menos um livro que vai ficar associado àquela cidade em sua memória.

Ele folheia seus livros ao acaso e encontra entre as páginas fotos, flores secas, sedas, ingressos de teatro ou cinema, bilhetes, pequenos souvenires que valem, cada um, um livro inteiro – tal como cada livro vale uma biblioteca.

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