CAPÍTULO I
A Quaresma do ano de 1429 apresentava uma característica maravilhosa em face do calendário, uma coincidência admirável, não apenas aos olhos do comum dos mortais, mas também dos sábios iniciados na aritmética. É que a astronomia, origem do calendário, era nessa altura cristã. Em 1429, a Sexta-Feira Santa coincidia com a festa da Anunciação, de forma que se celebravam no mesmo dia os dois mistérios que haviam iniciado e terminado a salvação dos homens, sobrepondo de forma maravilhosa Jesus concebido no seio da Virgem a Jesus a morrer na Cruz. Esta Ss]exta-Feira, na qual o mistério gozoso se ajustava com exatidão ao mistério doloroso, era chamado a Grande Sexta-Feira e celebravam-na com solenes festejos no Monte Anis, na igreja da Anunciação. Havia muito tempo que os papas tinham concedido indulgências plenárias de um grande jubileu ao antigo santuário, e o falecido bispo de Puy, Élie de Lestrange, obtivera do papa Martinho o restabelecimento desse perdão. Tratava-se de um destes favores que os papas concedem sempre, desde que lhos peçam convenientemente.
A absolvição da Grande Sexta-Feira atraiu a Puy-en-Velay grande número de peregrinos e comerciantes. A partir de meados de Fevereiro, os habitantes das regiões mais afastadas puseram-se a caminho, arrostando com o frio, a chuva e o vento. A maior parte seguia a pé, de bordão em punho. Sempre que possível, esses peregrinos viajavam em grupo para não serem muito roubados ou sujeitos a resgate pelos salteadores que dominavam as regiões despovoadas, e escaparem também aos senhores que exigiam o pagamento de portagem à entrada dos respectivos domínios. Sendo a zona montanhosa a menos segura, esperavam, nas cidades circunvizinhas, Clermont, Issoire, Brioude, Lyon, Issingeaux, Alais, até se juntarem no maior número possível, para finalizarem a viagem através da neve. Durante a Semana Santa, uma estranha multidão se acotovelou nas ruas montanhosas de Puy: feirantes de Languedoc, da Provença e da Catalunha, que conduziam as suas mulas carregadas de couros, de óleos, de lã, de tecidos ou de vinhos da Espanha conservados em odres de pele de bode; senhores a cavalo e damas em carruagens, artistas e burgueses escarranchados em mulas, com as mulheres e os filhos na garupa; depois a pobre multidão dos peregrinos que, coxeando, caindo aqui, levantando-se acolá, apoiados nos bordões, de saco às costas, arfavam na rude subida, seguidos pelos rebanhos de bois e de carneiros a caminho do açougue.
Encostado à parede da sede episcopal, Florêncio Guilherme, esguio, seco e escuro como uma cepa de videira no Inverno, ia devorando com os olhos os peregrinos e os rebanhos.
– Repara – disse ele para Margarida, a rendeira -, que gordas cabeças de gado. E Margarida, acocorada em frente dos fusos, retorquiu-lhe:
– Não há dúvida! Lindas e gordas.
Ambos pobres e desprovidos de bens materiais, estavam neste momento cheios de fome. Toda a gente dizia que a culpa era deles. Eis exatamente o que, neste mesmo instante, apontando-os a dedo, repetia Pedro Grandmange, o tripeiro, na sua loja.
– Seria até pecado – exclamava ele – dar esmola a tais malandros.
Este negociante de tripas poderia ter sido muito esmoler, mas receava perder a alma dando alguma coisa aos pecadores, e todos os burgueses de Puy nutriam os mesmos escrúpulos. Para não faltarmos à verdade, devemos dizer que, sem dúvida alguma, na sua esplendorosa juventude, Margarida a rendeira não igualara Santa Lúcia em pureza, Santa Ágata em constância, e Santa Catarina em sabedoria. Quanto a Florêncio Guilherme, fora o melhor escrivão da cidade. Durante muito tempo não tivera quem se lhe igualasse na maneira de redigir as horas de Nossa Senhora de Puy. Mas apreciara demasiado as festas e a comilança. A sua mão, agora, estava menos firme e a vista menos apurada; já não conseguia traçar com a mesma segurança as letras sobre o velino. Poderia talvez ganhar a vida iniciando aprendizes, na sua oficina, perto da Anunciação, com a tabuleta da Nossa Senhora, pois era homem de experiência e bom conselheiro. Mas, tendo tido a infelicidade de pedir seis libras e dez soldos ao mestre Jacquet Coquedouille e havendo-lhe restituído em diversas prestações oitenta libras e dois soldos, achou-se ainda por fim devedor de seis libras e dez soldos ao seu credor, contas estas que os juízes aprovaram, pois mestre Jacquet Coquedouille era um barra em aritmética. Eis o motivo por que a oficina de Florêncio Guilherme, mesmo junto da Anunciação, foi vendida, sábado, 5 de Março, dia de São Teófilo, em proveito de mestre Jacquet Coquedouille. A partir daí, o pobre escrivão ficou sem abrigo. Graças a João Magne, o sineiro, e com a proteção de Nossa Senhora, cujas horas escrevera, passava as noites no campanário da catedral.
O escrivão e a rendeira viviam com muitas dificuldades. Margarida só por acaso conseguia subsistir, uma vez que perdera a beleza e detestava fazer renda. Ajudavam-se um ao outro. Comentava-se maldosamente o facto, mas melhor seria que os louvassem por isso. Florêncio Guilherme era homem de conhecimentos. Sabendo em pormenor a história da bela Dama Negra de Puy e o cerimonial do grande perdão, lembrara-se por isso de servir de guia aos peregrinos, supondo encontrar alguém assaz caridoso que lhe desse o suficiente para cear em troca das suas belas histórias. Mas os primeiros aos quais oferecera os serviços haviam-no repelido, pois o seu esburacado fato não lhe abonava nem a ciência litúrgica nem o senso, e por isso voltara, triste e desanimado, a encostar-se à parede da residência episcopal, onde podia desfrutar de um pouco de sol e da companhia de Margarida.
– Eles pensam – informou amargamente – que não sei o suficiente para lhes enumerar as relíquias e contar os milagres de Nossa Senhora. Julgam decerto que o espírito me fugiu pelos buracos da farpela!
– Não é o espírito – retorquiu Margarida – que se escapa pelos buracos dos fatos, mas o agradável calor natural. Estou cheia de frio. Não há dúvida de que o homem e a mulher são julgados pela aparência. Ainda haveria quem me achasse a seu gosto se andasse vestida como a senhora condessa de Clermont.
Entretanto, ao longo da rua, em frente deles, os peregrinos empurravam-se em direção ao santuário, onde deviam ir receber perdão dos seus pecados.
– Vão sem dúvida abafar-se uns aos outros dentro em pouco – disse Margarida. – Há vinte e dois anos, na Grande Sexta-Feira, morreram duzentas pessoas sufocadas na porta da Anunciação. Deus lhes guarde a alma! Bons tempos; então era eu nova.
– Exatamente. Nesse ano a que te referes, duzentos peregrinos, em virtude da compressão recíproca, foram desta para melhor. E no dia seguinte parecia que nada sucedera.
Assim falando, Florêncio Guilherme avistou um peregrino muito gordo que não se apressava tanto como os outros a ir receber a absolvição, o qual voltava os seus grandes olhos para a esquerda e para a direita, receoso e embaraçado. Florêncio Guilherme aproximou-se dele e saudou-o humildemente.
– Senhor – disse-lhe -, vê-se logo que sois pessoa de conhecimentos, educada, e que não ides receber o perdão como um carneiro a caminho do açougue. Não sois como esses que caminham uns atrás dos outros. Concedei-me o favor de ser vosso guia; não vos arrependereis.
O peregrino, um gentil-homem de Limoges respondeu-lhe, no dialecto dessa região, que lhe não interessavam os serviços de um maltrapilho e que sabia muito bem ir sozinho à igreja da Anunciação para ser absolvido dos seus pecados E meteu resolutamente pés ao caminho. Mas Florêncio Guilherme lançou-se-lhe aos pés, a arrancar os cabelos:
– Detende-vos! detende-vos! senhor, por Deus, por todos os santos, nem mais um passo! A morte espera- vos, e não posso ver sem remorsos e desgosto um homem como vós encaminhar-se para o seu fim. Se avançardes mais por essa ladeira, tende como certa a morte. Estão a esmagar-se uns aos outros lá em cima. Já uns seiscentos peregrinos deram a alma ao Criador. E isso só ainda é o princípio. Ignorais, porventura, senhor, que há vinte e dois anos, no ano da graça de mil quatrocentos e sete, no dia de hoje e à mesma hora, nessa porta, nove mil seiscentos e trinta e oito pessoas, sem contar as mulheres e as crianças, se esmagaram umas às outras, morrendo todas? Nunca me consolaria se tivésseis a mesma sorte, senhor. Basta ver-vos para estimar-vos, assaltando-nos um súbito desejo de vos amar.
O gentil-homem de Limoges detivera-se, surpreendido, e empalidecera ao ouvir tais palavras e ao ver este homem a arrancar o próprio cabelo aos punhados. Assustado, começava a voltar para trás. Mas Florêncio Guilherme, de joelhos, segurou-o pelo gibão.
– Senhor, por aí não! por aí não! Poderíeis encontrar Jacquet Coquedouille e ficardes transformado em pedra. Mais vale deparar-se-vos o Basílico do que o Jacquet Coquedouille. Caso sejais tão prudente e ilustrado conforme a vossa aparência o indica, sabeis como deveis proceder para obter o perdão conservando a vida? Escutai-me. Sou bacharel. As santas relíquias percorrerão hoje as ruas e as encruzilhadas. Proporcionar-vos-á grande alívio tocar nos relicários que contêm a taça de cornalina pela qual bebeu o Menino Jesus, uma das ânforas das bodas de Caná, a toalha da Santa Ceia e o santo Prepúcio. Sou de opinião que deveis ir em minha companhia aguardar no quente a sua passagem, em certa hospedaria diante da qual sem dúvida desfilarão.
E, sem lhe largar a fímbria do gibão, disse com uma voz persuasiva, apontando a rendeira:
– Senhor, entregai seis soldos a essa excelente mulher, para que vá comprar vinho. Ela sabe onde ele é melhor.
O gentil-homem de Limoges, que era de natureza ingênua, caiu na esparrela, e Florêncio Guilherme ceou a quarta parte de um pato, cujos ossos levou consigo para oferecer à senhora Ysabeau, que dormia com ele nas traves do campanário. Tratava-se da pega de João Magne, o sineiro.
À noite, foi encontrá-la empoleirada no sítio do costume, perto do buraco que lhe servia de armazém, no qual guardava nozes e avelãs, amêndoas e frutos de faia. Vendo que o passaroco acordara com o barulho dos seus passos e se pusera a bater as asas, cumprimentou-o em voz baixa e disse-lhe de brincadeira:
– Pega, três vezes pega, bela dama encarcerada, passaroca claustral, comparsa Margot, japona abadessa, alada beata vestida de clarista, ave!
E acrescentou, oferecendo-lhe os ossos cuidadosamente embrulhados numa folha de couve:
– Senhora, aqui vos apresento os restos de um banquete que me ofereceu um gentil-homem de Limoges. Os naturais dessa região só gostam de rábanos, mas eu ensinei este a preferir aos tubérculos da sua terra o nosso pato tradicional.
No dia seguinte e durante o resto da semana. Florêncio Guilherme, não tendo encontrado o generoso cidadão de Limoges, ou qualquer outro viajante munido de farnel, jejuou a solis ortu usque ad occasum. Margarida a rendeira seguiu-lhe o exemplo. Aliás foram oportunos uma vez que se estava na Semana Santa.
CAPÍTULO II
Sucedeu que, no domingo de Páscoa, encontrava-se mestre Jacquet Coquedouille, notável burguês da cidade, a espreitar em sua casa, por um buraco da persiana, os numerosos peregrinos a descer a ladeira. Retiravam-se, contentes com a absolvição; e tal espectáculo despertou-lhe logo o desejo de venerar com mais zelo a milagrosa Virgem Negra. Convenceu-se de que uma dama assim tão visitada devia ser mui poderosa. Sentia-se velho e só em Deus tinha confiança. Duvidava um pouco da sua salvação eterna, pois que isso lhe trazia à lembrança os órfãos e as viúvas que reduzira à miséria. Ainda havia pouco tempo que despojara Florêncio Guilherme da sua escrevedoria com a tabuleta de Nossa Senhora. Emprestava dinheiro a juros com boas garantias. Não se pode concluir disto que fosse usurário, uma vez que era cristão e apenas os Judeus praticam a usura, os Judeus e, vá lá, também os Lombardos e os naturais de Cahors. Jacquet Coquedouille procedia de maneira diferente dos Judeus. Não dizia, como Jacob, Efraim e Manassés: «Empresto-vos dinheiro». Declarava: «Vou investir dinheiro no vosso negócio e no vosso comércio», o que era muito diferente. A usura e o empréstimo a juros eram proibidos pela Igreja; mas o negócio, não.
No entanto, ao lembrar-se de que havia desgraçado tantos cristãos, Jacquet Coquedouille sentia remorsos, receando a justiça divina suspensa sobre a sua cabeça; e, nesse santo Domingo de Páscoa, ocorreu-lhe a ideia de assegurar a proteção da Nossa Senhora para o dia de Juízo Final. Estava convencido de que intercederia por si, no tribunal do seu divino Filho, caso a presenteasse. Dirigiu-se portanto à enorme burra onde tinha o seu ouro aferrolhado e, depois de se certificar de que a porta de casa estava trancada, abriu o cofre cheio de anjinhos, de florins, de esterlinas, de dobrões, de coroas de ouro, de nobres de oiro também, de escudos com a efígie do Sol e de todas as moedas cristãs e sarracenas. Tirou, a suspirar, doze dinheiros de ouro que pôs em cima da mesa coberta de balanças, de limas, de tesouras, de aferidores e de livros de contas. Depois de fechar a burra com três voltas de chave, contou os dinheiros, voltou a contá-los, esteve a observá-los demoradamente, cheio de ternura, e em seguida começou a dizer-lhes umas coisas tão suaves, polidas, delicadas, piedosas, gentis e corteses, que em vez de linguagem humana mais parecia música celeste.
– Oh! minhas cordeirinhas – suspirava o excelente velho -, oh! minhas queridas cordeirinhas, oh! meus lindos e preciosos anhos de farto velo de oiro.
E, pegando nas moedas com tanto respeito como se se tratasse do próprio corpo de Nosso Senhor, pô-las na balança e verificou se tinham mais ou menos o peso da lei, embora se encontrassem já um tanto roídas pelos Lombardos e Judeus, por cujas mãos haviam passado.
Então voltou a dirigi-lhes a palavra, ainda mais suavemente do que da primeira vez:
– Oh! meus amáveis cordeiros, meus cordeiros amáveis, vou tosquiar-vos! Nada ireis sofrer com isso.
E, agarrando nas grandes tesouras, raspou nas peças de ouro aqui e ali, conforme era seu costume fazer antes de se separar de qualquer delas. Recolheu cuidadosamente as aparas numa gamela já quase cheia de fragmentos de ouro. Era sincero o seu desejo de oferecer doze cordeirinhos à Santa Virgem. Mas não se julgava dispensado de agir segundo o costume. Depois, foi procurar no armário dos penhores uma bolsinha azul, com bordados a prata, que certa dama leviana e perdulária lhe confiara numa altura de aperto. Jacquet Coquedouille não ignorava que o azul e branco são as cores de Nossa Senhora.
Nesse dia e no seguinte nada mais fez. Mas durante a noite de segunda para terça-feira torceu-se na cama com cãibras e sonhou que os diabos estavam a puxá-lo pelos pés. Interpretou o sonho como uma advertência de Deus e de Nossa Senhora, passou o dia inteiro em casa, a meditar no seu significado, e depois, ao pôr-do-sol, foi levar a sua oferenda à bela Dama Negra.
CAPÍTULO III
Nesse mesmo dia, já noite fechada, Florêncio Guilherme preparava-se de ânimo triste para trepar ao seu aéreo abrigo. Jejuara à força o dia inteiro, embora fosse de parecer que um bom cristão não deve proceder desse modo durante a gloriosa semana. Antes de se ir deitar no alto do seu campanário, foi rezar devotamente à bela dama de Puy. Esta encontrava-se ainda, no meio da igreja, no sítio onde se oferecia, na grande Sexta-Feira, à veneração dos fiéis. Pequena e negra, coroada de pedras preciosas, envolta num manto a resplandecer de oiro, de gemas e pérolas, tinha em cima dos joelhos o seu Filho que, tão escuro como ela, mostrava a cabeça por entre uma fenda do manto. Era a milagrosa imagem que São Luís recebera de presente do sultão do Egito e que ele próprio viera depositar na igreja de Anis. Já todos os peregrinos haviam debandado.
O templo encontrava-se deserto e imerso na sombra. As últimas oferendas dos fiéis estavam expostas aos pés da bela Dama Negra, sobre uma mesa alumiada por círios. Via-se aí uma cabeça, diversos corações, mãos, pés, seios de prata, um berço de ouro, ovos, pães, queijos de Aurillac, e, numa gamela cheia de denários, de soldos e de patacas, uma pequena bolsa azul bordada a ouro. Junto desta mesa, sentado num caldeirão, estava a dormitar o padre que guardava as ofertas.
Florêncio Guilherme pôs-se de joelhos em frente da santa imagem, rezando mentalmente a seguinte oração:
«Senhora, sé é verdade que o santo profeta Jeremias, tendo-vos visto com os olhos do espírito antes de serdes concebida, esculpiu com as suas próprias mãos, no cedro, com toda a fidelidade, a santa imagem defronte da qual me encontro agora ajoelhado; se é verdade que, mais tarde, o rei Ptolomeu, posto ao par dos milagres operados por esta santa imagem, a arrebatou aos padres judeus, a trouxe para o Egito e a depositou, coberta de pedrarias, no templo dos ídolos; se é verdade que Nabucodonosor, que venceu os Egípcios, por sua vez se apoderou dela e a incluiu no seu tesouro, entre o qual os Sarracenos a foram encontrar quando tomaram Babilônia; se é verdade que o Sultão amava a vossa imagem acima de todas as coisas, e ia, adorá-la, pelo menos, uma vez por dia; se é verdade que o dito Sultão jamais a teria oferecido ao rei Luís, caso a sua mulher, que era sarracena, mas tinha em grande conta a cavalaria e o pudor, o não tivesse convencido a presentear com ela o melhor cavaleiro de toda a cristandade; enfim, se, como firmemente creio, esta imagem é miraculosa, senhora, determinai que ela faça um milagre em favor deste pobre letrado que tantos louvores escreveu a vosso respeito sobre o velino dos missais. Ele santificou as suas mãos pecadoras traçando na sua bela caligrafia, com maiúsculas vermelhas no princípio das frases, as quinze alegrias de Nossa Senhora, em língua vulgar e em rimas para consolação dos aflitos. É uma piedosa obra. Tende isso em atenção, senhora, e esquecei os seus pecados. Dai-lhe de comer. Eu tirarei grande proveito disso, e vós ficareis prestigiada, uma vez que o milagre se não afigurara de pouca monta aos olhos de quem conhece o mundo. Haveis recebido, hoje, oiro, ovos, queijos e uma pequena bolsa azul, bordada a prata. Não invejo, senhora, nenhum dos presentes que vos deram. Foram bem merecidos, e até sois merecedora de mais. Nem sequer vos peço para fazerdes com que me seja restituído aquilo que me roubou certo ladrão chamado Jacquet Coquedouille, um dos respeitados cidadãos da cidade de Puy. Não, só vos suplico que me não deixeis morrer de fome. Caso me concedais tal favor, prometo compor uma extensa e bela história da vossa santa imagem aqui presente.»
Assim orou Florêncio Guilherme. Apenas a pacífica e profunda respiração do guarda adormecido respondeu ao ligeiro sopro desta súplica. O pobre escritor ergueu-se, atravessou a nave sem ruído, pois estava tão leve que os seus passos já se não ouviam, e trepou em jejum a escada que tinha tantos degraus como de dias conta o ano.
Entretanto, a senhora Ysabeau, passando através das grades do claustro, penetrou na igreja. Os barulhentos peregrinos tinham-na perturbado. Apreciava a paz e a solidão. Avançou prudentemente, pondo devagar uma pata adiante da outra, deteve-se, esticou o pescoço, olhando com desconfiança em volta, depois, em graciosos saltos e a sacudir a cauda, acercou-se da Dama Negra; permaneceu alguns instantes imóvel, a observar o guarda adormecido, sondando com os olhos e os ouvidos as sombras e o silêncio; em seguida, com um enérgico bater de asas, saltou para cima da mesa das oferendas.
CAPÍTULO IV
Florêncio Guilherme preparava-se para dormir a noite no campanário. Estava cheio de frio. O vento, zumbindo pelas aberturas que davam saída ao som, tocava uma sinfonia executada por flautas e órgãos que por certo agradariam muito aos gatos e aos mochos.
Não era esta, porém, a única incomodidade do aposento. Desde o tremor de terra de 1427, que abalara toda a igreja, a flecha da torre caía pedra por pedra, ameaçando ruir por completo durante as tempestades. Nossa Senhora consentira neste estrago para castigar os pecados do povo. Florêncio Guilherme adormecera entretanto, sinal de que o seu coração estava isento de mácula. De todos os sonhos que teve, apenas lhe pareceu recordar-se de que, durante o sono, uma formosíssima dama o estava a beijar na boca. Mas quando os seus lábios pretenderam corresponder ao ósculo, engoliu dois ou três bichos-de-conta que, caminhando-lhe por cima da cara, tinham iludido o seu espírito entorpecido.
Acordou, ouviu um barulho de asas por sobre a cabeça e supôs que se tratava de um diabo, conforme seria natural, uma vez que é costume eles virem, em enormes bandos, atormentar os homens, especialmente durante a noite. Tendo, porem, nesse instante, a Lua espreitado por entre as nuvens, reconheceu a Ysabeau e viu que esta empurrava com o bico, para dentro da fenda da parede que lhe servia de armazém, uma bolsa azul, bordada a prata. Deixou-a trabalhar em paz, e mal a viu abandonar o esconderijo, trepou para cima de uma trave, deitou a mão à bolsa, abriu-a, verificando que continha doze cordeiros de oiro, que meteu no cinto, agradecendo à bela Dama Negra de Puy; como era ilustrado e sabia das Escrituras, tinha presente no espírito que o Senhor matou a fome do profeta Elias com a ajuda de um corvo, donde inferiu que a Santa Mãe de Deus enviara por intermédio de uma pega doze dinheiros ao seu cronista, Florêncio Guilherme.
No dia seguinte, Florêncio e Margarida a rendeira comeram uma escudela de tripas, pitéu com que sonhavam havia muitos anos.
Acaba desta forma o milagre da pega. Assim aquele que o contou possa viver, conforme é seu desejo, em paz e sossego, e que todos quantos o leram desfrutem das maiores venturas.
Anatole France

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