Esse recurso, porém, só se tornou possível porque tais ferramentas foram treinadas com trechos de obras literárias coletadas da internet, entre outras fontes. Como esses textos foram usados sem qualquer consulta prévia ou compensação financeira, cresce entre escritores e editoras a percepção de que suas criações artísticas estão sendo exploradas de maneira indevida por empresas de tecnologia.
“Foi como se tivessem encostado um caminhão na minha imaginação e roubado tudo o que eu já criei”, comparou Baldacci, que está entre os 17 escritores que processam a OpenAI e a Microsoft por uso indevido de suas obras. “Tudo em que trabalhei a vida toda agora pode estar em posse de outra pessoa que sequer conheço e pode ser usado para escrever os livros errados que são, na verdade, meus livros.”
A discussão tende a ganhar um caráter global, chegando inclusive ao Brasil. Para o romancista e jornalista Sérgio Rodrigues, autor do recém-lançado “Escrever é humano — Como dar vida à sua escrita em tempos de robôs”, um guia de escrita para humanos em tempos de domínio tecnológico, não há dúvida de que o uso não autorizado de textos por IA representa uma violação criativa.
— Para mim é roubo, ainda que possa ser difícil de enquadrar assim no ordenamento jurídico atual, uma vez que nossas leis de propriedade intelectual foram elaboradas num tempo em que esse tipo de ameaça não estava no horizonte — diz Sérgio Rodrigues.
Segundo ele, não se trata de ser “contra” a inteligência artificial, uma tecnologia que já não tem mais volta. O problema está na ausência de leis mais claras e adaptadas ao novo cenário:
— Se a espécie humana não fizer isso, será atropelada pelo maior trator de todos os tempos. Como já vem sendo, aliás, neste momento de faroeste desregulado que as big techs estão aproveitando ao máximo. A parte fraca na negociação somos nós, convém não esquecer.
Além de escritores, outros grupos da chamada indústria criativa já entraram na Justiça contra empresas de tecnologia por usarem seu trabalho sem permissão. Entre os profissionais que se manifestaram, estão músicos, fotógrafos, artistas visuais e jornalistas, entre outros.
Em abril deste ano, o debate esquentou após um movimento viral levar milhões de usuários do ChatGPT a transformarem imagens em reproduções feitas no traço dos desenhos animados do Studio Ghibli. Hayao Miyazaki, criador do Ghibli, não havia autorizado o uso de suas criações (o lendário artista japonês, por sinal, já manifestou mais de uma vez todo o seu desprezo pela inteligência artificial). Enquanto as redes sociais se enchiam de imagens imitando filmes como “Meu amigo Totoro”, críticos acusavam a OpenAI, criadora do ChatGPT, de se apropriar do trabalho alheio.
Como mostrou uma recente reportagem do Washington Post, as empresas de tecnologia têm levado a melhor nos processos judiciais até agora. Muitos casos terminam com autores se mostrando incapazes de mostrar que foram lesados, de acordo com os juízes. Por outro lado, processos judiciais revelaram que algumas empresas de IA coletaram os textos de autores baixando milhões de cópias digitais piratas de livros. Ou seja, sequer pagaram por exemplares.
— Por um lado, acho um pouco exagero dizer que usar um livro para treinar uma máquina junto com milhões de outros exemplos equivale a roubar o trabalho intelectual da pessoa — diz Vinicius Portella, autor do livro de ficção científica “O inconsciente corporativo e outros contos”, sobre uma rede neural capaz de reproduzir a escrita de Jorge Luis Borges. — É muito diferente de copiar uma melodia, uma trama etc. O mais grave pra mim são empresas que visam ao lucro se utilizarem de pirataria em massa para produzirem mais lucro para elas próprias.
O imbróglio é complexo e está longe de uma solução, afirmam especialistas em propriedade intelectual. Advogada especializada em Direito Autoral e Propriedade Intelectual, Liana Machado define a atual situação jurídica como um “jogo de empurra” de responsabilidade.
— É difícil categorizar o que as empresas de tecnologia fazem como “roubo” porque teria de envolver todo o tipo penal, incluindo obrigatoriamente a obtenção de lucros — diz ela. — No caso da literatura, por exemplo, as empresas dizem que apenas usam estes textos para treinar seus programas, não para editar livros.
As acusações de plágio também não tiveram sucesso nos tribunais. Após sua empresa vencer um processo contra escritores, a start up americana de inteligência artificial Anthropic (responsável pelo modelo de linguagem Claude) afirmou que os modelos da empresa não coletavam obras literárias para replicá-las, mas para “fazer uma curva radical e criar algo diferente”.
Mas, independentemente dos fins, uma empresa tem o direito de usar a obra de um autor sem sua autorização? É uma questão que dificilmente terá resposta sem uma nova legislação.
— Ainda estamos no meio do furacão, em busca de soluções — diz a advogada Deborah Sztajnberg, autora da primeira obra sobre Direito do Entretenimento no Brasil. — Se não encontrarmos uma forma de desenvolver esta nova tecnologia sem quebrar o sistema de propriedade intelectual, vamos entrar na barbárie.
Liana Machado aposta em um possível “pacto” em que artistas poderão determinar se seus escritos podem ou não ser coletados.
— É o que queremos, que o artista possa ter voz nessa coleta. A fundamentação é a proteção dos seus direitos autorais — diz ela. — Mas há muitos entraves. Por exemplo, se um autor deixou trechos de sua obra disponíveis gratuitamente (em sites, redes sociais, plataformas de leitura), isso dá direito às empresas de IA de “minerar” esses dados sem pedir permissão? Ao fim, o debate é sempre a difusão cultural para melhora social versus direito do autor.
Fundador do Espaço Tatuí, dedicado a publicações independentes em São Paulo, João Varella acredita que o meio digital “sagrou a falta de transparência” e que o mercado editorial brasileiro não está preocupado como deveria. Sua editora, a Lote 42, evita publicar versões digitais de seus livros, justamente para fugir da “mineração” das empresas de IA. Mas a editora também não ignora o mundo à sua volta, já que acaba de publicar “Computer love”, de Ian Uviedo, um livro físico escrito com uso explícito de IA.
— O Brasil, mais uma vez, está atrasado nessa área — lamenta o autor e editor. — A gente não consegue nem aprovar uma lei de proteção ao livro, que dirá assumir a vanguarda de um debate quente como esse da IA. Nos resta agora esperar as decisões de EUA e Europa, torcer para depois, com sorte, imitar.
Para Varella, os autores só estarão protegidos quando houver mais transparência das empresas de tecnologia.
— Os algoritmos devem ser explícitos, até para ajudar o usuário a entender o que está consumindo — diz ele. — Parte dessa volúpia das empresas de tecnologia em torno da IA se dá por ser uma terra de ninguém, chegam antes da legislação, do regramento. Exigir transparência para esse e qualquer outro novo desdobramento tecnológico vai nos fazer ter algum tipo de defesa.
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