Afinal foi bom privar-me da cooperação de padre Silvestre, de João Nogueira e do Gondim. Há fatos que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém. Vou narrá-los porque a obra será publicada com pseudônimo. E se souberem que o autor sou eu, naturalmente me chamarão potoqueiro.
Continuemos. Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda.
Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar. Levanto-me, chego à janela que deita para a horta. Casimiro Lopes pergunta se me falta alguma coisa.
— Não.
Casimiro Lopes acocora-se num canto. Volto a sentar-me, releio estes períodos chinfrins.
Ora vejam. Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheço finalmente que aquela papelada tinha préstimo.
O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero.
Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expressões técnicas, desconhecidas do público, e a ser tido por pedante. Saindo daí, a minha ignorância é completa. E não vou, está claro, aos cinquenta anos, munir-me de noções que não obtive na mocidade.
Não obtive, porque elas não me tentavam e porque me orientei num sentido diferente. O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. Tudo isso é fácil quando está terminado e embira-se em duas linhas, mas para o sujeito que vai começar, olha os quatro cantos e não tem em que se pegue, as dificuldades são terríveis. Há também a capela, que fiz por insinuações de padre Silvestre.
Ocupado com esses empreendimentos, não alcancei a ciência de João Nogueira nem as tolices do Gondim. As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor. É tarde para mudar de profissão. E o pequeno que ali está chorando necessita quem o encaminhe e lhe ensine as regras de bem viver.
— Então para que escreve?
— Sei lá!
O pior é que já estraguei diversas folhas e ainda não principiei.
— Maria das Dores, outra xícara de café.
Dois capítulos perdidos. Talvez não fosse mau aproveitar os do Gondim, depois de expurgados.
Graciliano Ramos, "São Bernardo"

Nenhum comentário:
Postar um comentário