sexta-feira, dezembro 20

Pra chegar o sono

 


Urubus e sabiás

Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás... Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.

— Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente...

— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

MORAL: Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá.

Rubem Alves, "Estórias de quem gosta de ensinar"

Gente do faz-de-conta


Para uma pessoa que leia um livro com o fim de saber, gozar e aproveitar o que ele diz, há vinte que só leem para dizer que o leram e poder brilhar fazendo citações dele.

Miguel de Unamuno

Contemplações do poeta ao cair da noite

Ainda há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo, também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres, além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária dos emolumentos consulares.

E como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar “pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo mal conhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)”. Entregava-me a uma profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim.

E não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é claro, “dês da primeira idade feito hábito neste santo exercício”. Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em ternura e querer-bem. E se nele “este antigo costume lhe trazia a viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos prazeres do divino ócio”, eu por mim tinha sempre bem afinado o meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem, que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia em que nunca mais nos haveríamos de separar.

De outros turnos – como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo os negócios, “subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto sobre um raminho canta descansadamente”, – também eu deixava-me estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e feito ele que, à imagem da avezinha, “depois de alargar os olhos pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando em quando alegres Hinos” – eu por minha vez, ante a ideia de compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa única, o meu antes triste e multifário coração.

Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

História de Verão

Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela, obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa dos seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava, era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação perturbava a minha alegria - comigo, como é que faria o seu mel?
Eugénio de Andrade, "Memória doutro Rio/'

Apelo

Amanhã, faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.


Com os dias, Senhora, o leite pela primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.

E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero na salada – o meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o sacarrolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
Dalton Trevisan

quinta-feira, dezembro 19

Preparando a festa

 


O pior de tudo

O pior de tudo nem é esse ácido queimando na boca do estômago desde a hora do café até o escovar-dos-dentes antes de apagar de vez a luz; como também não é a pressão nas veias do cérebro, ou artérias, sei lá o que são, sei que parecem inchadas como se cada má notícia lida em silêncio diante do monitor fosse o pumpear acelerado de uma bomba de encher pneu de bicicleta, inflando esses condutos sanguíneos, que segundo se diz têm a espessura menor que um fio de cabelo, são tão finos que os glóbulos vermelhos passam por dentro deles em fila indiana, mas depois de meia hora de redes sociais cada veia dessas está da grossura de um macarrão de bom calibre, o que faz a cabeça latejar a cada mexida, a cada vez que a gente lê algo inominável e o primeiro impulso, o primeiro e infantil impulso é ficar fazendo assim com a cabeça, não, não, não pode ser, e a cabeça responde com fagulhas, com agulhas, com faíscas dolorosas de nervo-exposto.


Também não é (o pior de tudo) o fato de saber que tudo ocorre fora dessa mesma cabeça; não há muita lógica no fato de ela ostentar tanta pressão, afinal é lá fora a catástrofe, afinal é lá fora o desmoronar de um mundo, afinal tanto faz para o mundo que essa cabeça esteja saboreando à noite seus pesadelos habituais em cima do travesseiro empapado de suor quanto que esteja aqui sendo balançada com incredulidade e (bora reconhecer) um certo teatralismo se quem se boquiabre diante de cada despautério do real, histrionicamente, como se houvesse por perto (nunca há) alguém que percebesse um movimento sutil e erguesse o sobrolho e perguntasse o que é que há, você está bem, está com uma cara engraçada.

Não, as coisas são o que são, são porque são mesmo e não adianta balançar cabeça, bater cabeça, perder a cabeça, e caso seja mesmo necessário continuar lendo tantos fatos espantosos às oito da matina, horário infame, horário da cafeína dos insones, então que seja, mais vale a pena ir lá dentro e derramar a meia caneca que já esfriou esquecida, enchê-la da droga negra fumegante, trazê-la para o primeiro gole, que não resolve nada, e deixá-la ali ao alcance da mão que nem se move, deixá-la entregue à entropia de si mesma, esfriando como se a temperatura ambiente estivesse uns dez graus abaixo do que efetivamente está.

Um placebo provisório é tentar frasezinha de efeito no arquivo-word ainda em branco, um comentariozinho metido a esperto a respeito desse falso paradoxo, dizer algo como: “O verão está tão brabo que a gente pode deixar uma xícara em cima da mesa durante meia hora e o café permanece tomável.”

O pior de tudo não é a guerrilha das dores que se deslocam corpo afora com a rapidez de um grupo de espartaquistas bem treinados, atacando agora nas costelas, depois no ouvido, mais tarde na sola do pé, e por aí vai; afinal a ciência já provou que há pessoas somatizadoras e a presente vítima certamente é uma delas; deve existir inclusive uma relação topológica entre checar a data de um boleto e sentir a pontada no ouvido, pensar em dinheiro e sentir a acelerada no coração, ver a manchete do sinistro e já adivinhar a alfinetada fina bem na vértebra cervical. Há uma correspondência do-in entre cada dor do mundo e cada ponto sensível do corpo, descobre ele, esfregando as mãos excitado diante deste futuro Nobel. Estimulando-se a violência policial nas comunidades encarapitadas no morro produz-se a notícia capaz de fazer o calo-de-sangue crescer sob a pele; toda vez é assim, parece uma parceria, uma combinação sob contrato. Cada vez que um direito fundamental é atropelado pela fúria quadrupedal dos congressistas as veiazinhas das meninges fritam que é uma beleza. E assim por diante.

O remédio seria então o solipsismo, o retorno larvar ao umbigo primevo, o refúgio na caverna de cajado em punho? Parece que não, porque afinal o vírus informacional já foi transferido para os neurônios, e mesmo em caso de exílio voluntário não seria mais a notícia – e sim a lembrança – a deflagrar a dor correspondente. Não. O processo já teve início. O contágio já aconteceu. Agora é só uma questão de tempo até a pressão da realidade fazer explodir um desses fusíveis, um desses pontos nevrálgicos, e colapsar o conjunto num monte informe de carnes e ossos agora definitivamente imóveis e em irreparável resfriamento.

O pior de tudo nem é essa reiterada fantasia de auto-imolação, é o fato de que a única redenção talvez seja a consciência impotente de que isso de fato acontece, e não poder fazer nada, e não poder chorar pitanga, e não poder redigir um obituário poético pelo leite derramado, não poder ver o mundo pegar fogo e murmurar a mais pragmática e reconfortante das orações fúnebres, a que diz “antes ele do que eu”. Nem é isso o pior: o pior é o retalhamento das expectativas, o vazamento deflacionário das esperanças, a coagulação opaca dos fluxos vitais, a sensação de que a encruzilhada crucial está ficando cada-vez-mais lá para trás, enquanto o caminho-errado se alarga à nossa frente e se acelera sob nossos pés a cada dia que corre, e não adianta ir à janela, fumar um cigarro, jorrar chuveiro frio, vestir roupa limpa, ir à geladeira, raspar a barba desse rosto que parece um terreno baldio, arreganhar os dentes como se alguém estivesse filmando aquilo com uma câmara, vai ver que estão, vai ver que enquanto eu dormia já estamos no século das coisas pensantes, da casa inteligente, o espelho é uma placa transmissora, o interruptor é um microfone embutido, e num plano superdimensional existem criaturas com três cérebros e onze pseudópodos se divertindo com a minha neurose, ou talvez as criaturas nem sejam essas, sejam meros sujeitos iguais a mim, aqueles do colégio, os que me cobriam de tapa no recreio e me cravavam um lápis ameaçador nas costelas durante a prova exigindo as respostas, e respostas é o que não tenho para lhes fornecer, muito menos agora, ensaboado imóvel diante do espelho e pensando em cortar os pulsos com o prestobarba, bela maneira de começar o dia, um dia igual a todos os outros, nem melhor nem pior, um dia que começa como todos e que (tomara, tomara) terminará como todos, no travesseiro suado, no escuro final, no instante de fechar os olhos exaustos de ver e pedir que não seja aquela a última vez, já que a vida é um pesadelo do qual ninguém quer despertar.

Os embrulhos do Rio

Encontro o amigo Mário em seu escritório, à volta com papéis e barbantes, fazendo um grande embrulho. São encomendas e presentes que vai mandar para sua gente em Santa Catarina. Inábil e carinhosamente ele compõe o grande embrulho, que sai torto e frágil.

Não me proponho a ajudá-lo, porque sou seu irmão em falta de jeito.

Aparece, a certa altura, um rapazinho, que olha em silêncio a faina de Mário. Este compreende a ironia e compaixão do tímido sorriso do rapaz e, com um gesto, pede sua ajuda. Em meio minuto, o moço desmancha tudo e faz daquele embrulho informe e explosivo um pacote simples, sólido e firme.

Mas não estou pensando nessa qualidade que sempre me pareceu milagrosa, essa certeza das mãos em ordenar as coisas para nós rebeldes e desconjuntadas, para esses privilegiados, obedientes e fáceis. Penso nas mãos que, em uma praia distante, vão desembrulhar essas coisas; na alegria com que no fundo da província a gente recebe os presentes.

Quando meus pais ou minha irmã voltavam de um passeio ao Rio, nós todos, os menores, ficávamos olhando com uma impaciência quase agônica as malas e valises que o carregador ia depondo na sala. A alegria maior não estava no presente que cada um recebia, estava no mistério numeroso das malas, na surpresa do que ia surgindo. Uma grande parte, que despertava exclamações deliciadas das mulheres, não nos interessava: eram saias, blusas, lenços, cortes de trapos e fazendas coloridas, joias e bugigangas femininas. A mais distante das primas e a mais obscura das empregadas podia estar certa de ganhar um pequeno presente: a alegria era para todos da casa e da família, e se derramava em nossa rua pelos vizinhos e amigos. Além dos presentes havia as inumeráveis encomendas, três metros disto ou daquilo, um» sapatinho de tal número para combinar com aquele vestidinho grená, fitas, elásticos, não sei o que mais.

Se esse mundo de coisas de mulher nos deixava frios e impacientes, os brinquedos e os presentes para homens e coisas para uso caseiro eram visões sensacionais. Jogos de papelões coloridos, coisas de lata com molas imprevistas, fósforos de acender sem caixa, abridores de latas, sopa juliana seca, isqueiro, torradeiras de pão, coisas elétricas, brilhantes e coloridas — todo o mundo mecânico insuspeitado que chegava ao nosso canto de província. E também programas de cinema, cardápios de restaurantes...

Seriam, afinal de contas, coisas de pouco valor: os grandes engenhos modernos estrangeiros estavam fora de nossas posses e de nossa imaginação. Mas para nós tudo era sensacional; e depois de esparramado sobre a mesa ou pelo chão o conteúdo da última valise, e distribuídos todos os presentes, ainda ficávamos algum tempo aturdidos por aquela sensação de opulência e de milagre. E o dia inteiro ouvindo a conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam histórias, falavam da última revista de Araci Cortes, no Recreio, da última comédia de Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença dos nossos parentes de Vila Isabel — ainda ficávamos tontos, pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão próximo e tão distante.

Aos 9 anos de idade, vim pela primeira vez ao Rio, trazido por minha irmã. Voltei muitas vezes; estou sempre voltando. Aqui já me aconteceram coisas. Mas o grande encanto e o máximo prestígio do Rio estavam nas malas e nos embrulhos abertos diante dos olhos assombrados do menino da roça.
Rubem Braga, "A traição das elegantes"

Fonte inesgotável

Se o leitor, o leitor de livros; aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra trás e começar do principio, e poder ler os primitivos e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação, transformando-se numa mina inesgotável de beleza e valor.
José Saramago

Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Os livros estão na moda?

Descreve-se como “uma doida por livros”. Com mais de 20 mil seguidores no TikTok, Íris Bicho, 21 anos, foi das primeiras booktokers em Portugal, nome atribuído a quem usa a rede social para partilhar pequenos vídeos sobre literatura. “Comecei por acompanhar alguns booktokers internacionais e adorava ouvi-los falar sobre livros, muitos deles nem sequer estavam traduzidos em Portugal”, conta. Refere-se, essencialmente, à ficção pertencente ao segmento Young Adults (jovens adultos), com temas próximos desta geração. Como a maior parte dos amigos não gostava de ler, começou a fazer este tipo de conteúdos, “para conseguir chegar a mais pessoas que partilhassem esta minha paixão”, explica.

Não foi a única. O movimento online cresceu, ao ponto dos booktokers portugueses terem ganhado um estatuto especial na promoção da literatura – internacionalmente, representam uma das maiores comunidades no TikTok e são decisivos nas tendências livreiras –, celebrando parcerias com editoras e até com o Plano Nacional de Leitura (PNL). “Sou reconhecida em alguns sítios e até há quem me diga que começou a ler por causa dos meus vídeos, o que é ainda um bocadinho surreal, mas muito gratificante”, alegra-se Íris.

Um estudo apresentado em setembro pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), com dados de 2023, apontava a faixa etária dos 15 aos 24 anos como a que mais cresceu na compra e na quantidade de livros lidos (mais de 40%, em relação a 2022). O discurso simples e entusiástico adotado nas apresentações dos booktokers parece favorecer a aproximação às obras.

Já o Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgou, em outubro de 2023, as conclusões do Inquérito à Educação e Formação de Adultos, e referia que a leitura de livros aumentou, de 2016 para 2022, de 38,8% para 41,3%. O crescimento verificou-se, sobretudo, na faixa dos 18 aos 34 anos (de 44% para 48,6%), e dos 35 aos 54 anos (de 38,6% para 43,4%). Mais de dois terços leu menos de cinco livros nos últimos 12 meses (69,5%).

No caso de Íris Bicho, a relação com a literatura estava facilitada. A mãe é uma ávida leitora e levava a filha a participar, desde pequena, em atividades de incentivo à leitura, e a avó também comprava à neta imensas obras. “Foram as minhas maiores influências”, confessa Íris.

A estudante do mestrado de Ciências Empresariais confessa que, antes da pandemia, este não era o seu passatempo mais consistente. “Sou muito irrequieta e, durante o confinamento, sentia que já tinha feito tudo o que havia para fazer em casa”, conta. Nessa altura, a mãe passou-lhe para as mãos um exemplar antigo de Orgulho e Preconceito, o clássico de Jane Austen. “Foi o momento perfeito! É um dos meus livros preferidos”, refere. Atualmente, é capaz de devorar 20 obras por mês. “Leio muitos géneros [por mês, são-lhe enviados entre 30 a 40 livros pelas editoras] … mas prefiro os thrillers e as distopias”, acrescenta.

Íris rebate quem aponta o dedo à qualidade da categoria Young Adults, a mais recomendada pelos booktokers. “Para alguém que não gosta de ler e cujo primeiro contacto com os livros é a partir das leituras obrigatórias da escola, muito densas e complicadas, começar com literatura mais fácil pode abrir caminho para obras mais complexas”, sublinha.

Quando é convidada para visitar escolas e bibliotecas, Íris faz questão de passar a mensagem de que, mais do que obrigar os estudantes a ler esta ou aquele título, é importante mostrar que “há livros sobre tudo, para todos os gostos… só temos de procurar”. Provavelmente, cada pessoa encontrará um à sua medida.

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ooktoker e promotores de festivais literários
defendem uma abordagem descomplexada dos livros

A tendência de crescimento do mercado livreiro – no ano transato foi de 7%, mas já tinha sido de de 16% em 2021 e de 15% em 2022 –, continua a verificar-se em 2024. “No final de setembro, face ao mesmo período do ano anterior, tinha crescido 8,5%”, aponta Pedro Sobral, presidente da APEL. Um aumento verificado, sobretudo, nas faixas etárias mais novas, nomeadamente na categoria de ficção, algo que nunca tinha acontecido em Portugal. “Esta grande comunidade de leitores vai permitir um crescimento com alguma sustentabilidade nos próximos anos”, acredita.

Casos como o de Íris, de redescoberta da leitura durante os confinamentos, foram muito comuns. “O que as redes sociais fizeram foi ampliá-la por biliões de pessoas, com muita rapidez, e houve esse encontro com conteúdos que podem, literalmente, mudar uma vida”, sublinha Sobral. Há outro fator que os editores conhecem bem. “No momento em que a pessoa encontra o livro certo, muito dificilmente o hábito de leitura não se instala, seja em que idade for.”

Existe sempre o receio de tratar-se de uma moda passageira. Por isso, iniciativas como a do cheque-livro (ver caixa), proposta pela APEL, são essenciais. O programa permite que jovens de 18 anos possam usufruir de 20 euros na compra de livros, de escolha livre. “As estatísticas mostram que, por volta desta idade, o interesse pela leitura se perde um pouco, o que é natural, porque há muitos outros estímulos… desta forma, redescobrem o prazer de frequentar uma livraria”, defende Pedro Sobral.

Há quem seja cauteloso na análise e recorde o inquérito realizado às práticas culturais em Portugal, encomendado pela Fundação Gulbenkian ao Instituto de Ciências Sociais, de 2020, que contrastava com os números da APEL, ao apontar que 61% dos inquiridos, no último ano, não leram qualquer livro impresso.

“Estamos a comparar estudos diferentes, feitos com alguns anos de diferença”, contrapõe Regina Duarte, comissária do Plano Nacional de Leitura. “No último ano da pandemia verificou-se uma tendência (não só em Portugal), de aumento dos níveis de leitura e que, posteriormente, continuou a subir. Essa foi a grande surpresa, porque poderia ter sido um fenómeno circunscrito ao facto de estarmos fechados em casa e termos menos oferta.” Curiosamente, muitos jovens viam nos livros uma alternativa aos ecrãs, em relação aos quais manifestavam algum cansaço. “Sou uma pessoa otimista, mas não conseguiria antecipar, há quatro anos, que a leitura ganharia este caráter moderno, trendy”, observa Regina Duarte.

A comissária do PNL também realça o efeito booktoker e descarta a crítica feita a estes influenciadores de privilegiarem uma literatura fácil. “O hábito de leitura em si é sempre positivo, porque quem se vê e se sente confiante como leitor, sente-se também confiante para conhecer outros mundos e outros autores”, considera. “Isso tem acontecido. Há clássicos que estão a ser reeditados, como as obras da Jane Austen, e que aparecem nas redes sociais à boleia de outra literatura mais popular e mais leve. Não podemos olhar para estas tendências como superficiais, temos de vê-las sem preconceitos.”

Para Regina Duarte, “o erro é assumirmos que há um perfil de bom leitor, aquele que lê os clássicos, os tratados filosóficos ou a literatura erudita. Há literatura de grande qualidade a chegar do mundo inteiro e para todos os leitores, e o PNL tem trabalhado nesse sentido, a divulgar leituras que chegam a todos”. De facto, no catálogo online, é possível fazer uma busca muito apurada das recomendações (seja por idade, nível de leitura, género) e não faltam sugestões temáticas originais, desde o “livro que nos faz sentir mais inteligentes” ao “livro com choro garantido”.

Para aferir as práticas de leitura atuais entre o público escolar, foi realizado o estudo Práticas de Leitura dos Estudantes dos Ensinos Básico e Secundário, uma parceria entre o PNL e o Observatório Português das Atividades Culturais (OPAC). Por enquanto, conhecem-se apenas alguns dados preliminares. Numa análise comparada de três inquéritos, feitos em 2019, 2021 e 2023 (os dois primeiros a uma amostra de mais de 20 mil alunos; o terceiro a uma amostra de mais de 31 mil), os resultados mostram uma melhoria das bibliotecas das famílias dos alunos dos vários ciclos e níveis de ensino, exceto no terceiro ciclo. “Os dados sugerem ainda que o nível de escolaridade dos pais é um fator muito importante para explicar a dimensão da biblioteca doméstica”, indicam as conclusões. A correlação é óbvia: quantos mais livros tiveram espalhados pela casa, maiores serão os índices de leitura dos estudantes.

Os resultados do Barómetro’ 23 mostram que a leitura de livros é elevada em termos percentuais (sempre acima dos 70%), sobretudo no 1.º e 2.º ciclos (acima dos 90%), com resultados ligeiramente superiores aos verificados em 2019 e 2021. Mas onde há mais crescimento é no terceiro ciclo (de 82,6 para 90,4%) e no ensino secundário (de 73,8% para 78,2%).

Uma comparação entre os inquéritos revela ainda um aumento da percentagem de alunos com mais de 100 livros em casa e uma diminuição do grupo de alunos com menos de 20 títulos. “Verificámos também que, em termos gerais, cerca de um em cada quatro alunos têm menos de 20 livros em casa, constatação que deve ser objeto de reflexão por parte dos decisores políticos”, sublinham os autores.

No caso de Margarida Carvalho, 60 anos, o gosto pela leitura vem de tenra idade. Os livros podiam não abundar na casa dos seus pais – até tinha de fugir para a casa de banho ou para o fundo do quintal para ler os do Tio Patinhas –, mas as bibliotecas públicas colmatavam essa falha. Agora, juntamente com a filha e a neta, Filipa e Vitória Ribeiro, de 34 e 8 anos, faz da Biblioteca Municipal Florbela Espanca (BMFE), em Matosinhos, um pouso frequente.

“A minha mãe estava constantemente a incentivar-me a ler, mas só por volta dos 15 anos fiquei cativada por um romance [A Vida Secreta das Abelhas, de Sue Monk Kidd, um best-seller mais tarde adaptado ao cinema]… julgo que me faltava descobrir o que realmente apreciava”, recorda Filipa. Atualmente, devora em média um livro por semana e é ela quem faz muitas recomendações à mãe.

Além de romances, gosta muito de livros infantis e, já quando Vitória crescia na sua barriga, lia-lhos em voz alta. “Adoramos vir juntas à biblioteca, seja para participar na Hora do Conto, seja para passar a tarde, a explorar o que há nas prateleiras”, conta a educadora parental. “Gostava que ela ficasse com esse bichinho… Para mim foi extremamente importante, tinha dificuldades na escrita e melhorei significativamente”, observa Filipa. Ainda hoje mantêm a rotina de ler em conjunto, antes de adormecerem.

Estão provados os estímulos proporcionados pela leitura em família: melhora as competências de literacia; proporciona o desenvolvimento emocional e cognitivo; enriquece o vocabulário e a linguagem; alarga o conhecimento do mundo, de nós próprios e dos outros; reforça os laços afetivos entre gerações. No último lançamento de Michel Desmurget, Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais, o especialista no desenvolvimento cognitivo infantil e juvenil reforçava, precisamente, que os “livros nos tornam melhores, pela capacidade de cultivar a mente, fecundar a imaginação, reparar a psique, acabar com a solidão, derrubar o obscurantismo, desenvolver a linguagem, salvaguardar as memórias coletivas”.

Diga-se de passagem que o edifício da BMFE, da autoria do arquiteto Alcino Soutinho, rodeado de um espelho de água e com as amplas vidraças a garantir luz abundante, é especialmente apelativo. A agenda de atividades ajuda igualmente a cativar utentes: além da Festa da Poesia e do festival Literatura em Viagem (LeV), há uma comunidade de leitores (atualmente orientada pelo escritor Nuno Camarneiro), horas do conto, exposições, oficinas e apresentações de livros.

“Em 2023, visitaram-nos cerca de 55 mil pessoas, emprestamos mais de 60 mil exemplares, e registamos mais de 1 500 leitores novos, num total de mais de 30 mil inscritos”, aponta Nuno Cabo, chefe de divisão da biblioteca de Matosinhos. “Cremos que metade visita-nos com regularidade. Pertencem a diferentes faixas etárias, alguns deles muito jovens”, acrescenta. Aliás, têm investido na aquisição do género Young Adults e também Manga (banda desenhada japonesa), em resposta aos pedidos da população mais nova.

A Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) é a rede cultural com cobertura mais expressiva, estando presente em 303 dos 308 municípios do País (as exceções são Aljezur, Marvão, Terras de Bouro, Vila Viçosa e Calheta, onde foram criadas bibliotecas itinerantes). “São dos espaços mais democráticos que se conhecem, porque disponibilizam recursos de forma completamente gratuita”, valoriza Nuno Cabo.

O reforço do papel da RNBP (através de contratos-programa articulados com os municípios) foi uma das bandeiras anunciadas, recentemente, pela ministra da Cultura, Dalila Rodrigues. Uma aposta na descentralização, com as bibliotecas a serem vistas como “Unidades Culturais de Território”. Ali serão implementados uma série de programas, desde o reforço dos acervos, à circulação de autores portugueses e de professores de Literatura pelas bibliotecas, passando por residências artísticas e bolsas de criação literária.

Ligado ao LeV esteve Paulo Ferreira, fundador da Booktailors, empresa que conta no seu currículo a organização de vários eventos literários pelo País (como o Húmus, em Guimarães, ou o Utopia, em Braga). Inspirados pelo decano Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim – já com 25 edições realizadas e um público fidelizado –, “percebemos que haveria espaço para espalhar esta ideia bonita dos festivais literários, lugares descontraídos e descomplexados de acesso ao livro”, recorda. “O grande desafio destes eventos é falar não só para os evangelizados, mas alargar a base de leitores.”

Desmistificar a figura do escritor, isolado numa torre de marfim, foi prioritário. “Tentamos ao máximo quebrar a barreira e fazer com que estejam disponíveis para falar com os leitores, respeitando a personalidade de cada um”, acrescenta. Recorda-se, por exemplo, do sucesso provocado por Valter Hugo Mãe no FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, com a audiência a aplaudi-lo de pé, e de como fez explodir o seu reconhecimento no Brasil.

Presença frequente é igualmente o escritor José Eduardo Agualusa, que diz encontrar muitos jovens nos festivais literários. “Creio que, hoje, há mais leitores a chegarem da literatura juvenil para a literatura adulta do que acontecia há uns anos. O Harry Potter foi um fenómeno global, formou muitos leitores. Quem leu a coleção completa, fez uma preparação para ser um grande leitor”, sublinha o autor angolano.

Para que os festivais não se esgotem na festa, “é essencial respeitar os territórios, olharmos para a realidade que existe e para as estruturas locais, que durante o ano inteiro fazem o seu trabalho de mediação da leitura, e contar com o seu envolvimento. Não tenho dúvidas de que, onde foi feita essa aposta, forjámos leitores”, aponta Paulo Ferreira.

Localizada numa rua secundária do Porto, com uma montra discreta, a Flâneur não é, seguramente, um lugar de passagem, mas “de paragem”, como sublinha Arnaldo Vila Pouca que, juntamente com Cátia Monteiro abriu, em 2015, a livraria independente. Na verdade, o rodopio de clientes a vaguear por ali, a um sábado de tarde recente, era significativo. O ambiente acolhedor convida a deixarem-se ficar, a folhear as obras ou a participarem numa das atividades regulares. “Conseguimos criar uma comunidade, que tem crescido”, explicam.

De facto, um estudo comparativo sobre hábitos de leitura e compra de livros, lançado pela European and International Booksellers Federation, indicava que cerca de 25% dos portugueses compram exclusivamente em livrarias físicas (contrastando com a média internacional de 14%), e preferem as independentes, graças à conveniência, às promoções e à atmosfera agradável. Mas só 37% dos adultos encara a leitura como um passatempo (ainda assim, acima da média europeia, de 34%).

O envolvimento emocional da dupla na condução dos destinos da Flâneur é enorme. “Temos de ter tempo para escutar e conhecer as pessoas. Quando nos pedem conselhos, é como se estivéssemos a escolher para alguém que nos é muito querido. Há muita partilha… afinal, quando falamos de livros, também falamos de nós, não é?”

Era nesse espírito de partilha que, naquela tarde, decorria a tertúlia literária Felicidade Clandestina (nome emprestado de um dos títulos de Clarice Lispector), desta vez sobre A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. “Sendo a leitura uma atividade solitária e subjetiva, ao chegarmos aqui temos várias vivências do livro. É muito enriquecedor e estimulante ouvir outras perspetivas, ficamos a pensar nelas”, explicava Isabel Topa, a moderadora. Um a um, são convidados a ler algumas passagens marcantes. “Os sublinhados são como âncoras, de vez em quando pego num livro de propósito para os ver, pode ser que me valham de alguma coisa naquele dia”, confessa Francisca, uma das participantes. Porque a literatura também salva.

Nos últimos anos, o crescimento dos clubes de leitura é inegável. O PNL criou, inclusive, tutoriais e linhas de financiamento para apoiar a sua criação (nas escolas, no Ensino Superior, em empresas e associações).

As Heróides era um sonho de longa data de Sara Barros Leitão. O dinheiro ganho pela atriz, dramaturga e encenadora com o Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II (no valor de cinco mil euros), em 2000, foi integralmente gasto na produção deste clube do livro feminista. “Olhar para as obras de um ponto de vista feminista é encontrar um mundo habitado por muitas pessoas, e sair da hegemonia do homem branco de classe média”, explica.

Desde então, desafia-se “a ler livros que, à partida, não leria sozinha. Sinto-me acompanhada nas leituras, que foram muito diversas e permitiram-me alargar os horizontes: já lemos teses de doutoramento, poesia, literatura infantil, queer, quase sempre escritas por mulheres, de todo o mundo”, relata. “Criou-se uma comunidade, somos cerca de 80 pessoas completamente fiéis e outras que vão flutuando, e isso é o mais comovente.”

Não há um perfil de bom leitor e não podemos olhar para estas tendências como superficiais, temos de vê-las sem precon-ceitosRegina Duarte, Comissária do Plano Nacional de Leitura

Entretanto, no Espaço Cassandra, onde está sediada a sua estrutura artística, aproveitou-se uma sessão presencial das Heróides (ocorrem maioritariamente online, uma vez por mês, por inscrição livre) para inaugurar uma pequena livraria, onde estão muitas das obras abordadas ao longo destes quatro anos de existência.

Desta vez, o livro escolhido, A Desobediente, biografia de Maria Teresa Horta escrita por Patrícia Reis, foi votado pela comunidade, mas as escolhas costumam estar entregues a convidados. “Não são especialistas nos livros ou editores e isso também nos deixa livres para falarmos com sinceridade. É muito comum alguém dizer ‘não gostei do livro’ e outra responder ‘mas eu adorei! Como é que não gostaste?’. O debate é muito aberto e respeitoso”, comenta Sara.

Sara gosta de partilhar a história de um pai que começou a frequentar as Heróides por causa da filha, de 16 anos, “a passar por um processo de emancipação enorme, como qualquer adolescente, e a descobrir-se politicamente”. “Participava para conseguir estar mais próximo dos interesses da filha, e isso é muito bonito, a possibilidade de diálogo intergeracional que o clube proporciona.”

Enquanto elemento agregador, a leitura dificilmente ficará fora da moda. Venham os fenómenos que nos põem a ler!

quarta-feira, dezembro 18

Leitura com sinfonia ambiente



Nada é suficiente

- Nunca pensou escrever um romance?

- Sou um autor de folhetos, acho que interrogativos, e sobretudo um muito interrogativo leitor de perguntas. Mais nada.

- Basta para uma vida ?

- Nem sei se basta para uma verdadeira morte. Nada é suficiente para se morrer. Ou é suficiente cruzar os olhos com os de uma leoa materna. Ou brandir esse pequeno objecto eléctrico, embora seja tão pequeno e a noite por todos os lados do quarto pareça interminável. Conheci um homem, um psiquiatra descontente — são raros, os psiquiatras descontentes, conheço-os muito contentes a ganhar para enlouquecer as pessoas, rende tanto como a política, trata-se de política, a sinistra política dos tratamentos —, vivia numa ilha, este, descontente, adorava falar de estrelas, constelações, sabia tudo, mas era, digamos, estelarmente irredutível: estava contra a ordem celeste. Mandou substituir o tecto do quarto de dormir por uma abóbada com um sistema electrónico de corpos celestes, deslocados, todos, relativamente à estrutura natural, autónomos entre si. Ali era a lua nas suas fases e as Ursas e o Cruzeiro do Sul e a estrela Arcturus: um sistema de teclas permitia acender aquilo que se desejasse. O que vigorava era um céu dele, era ele. Talvez pudesse morrer. De facto morreu mas não sei de que maneira interior morreu. Nunca se sabe aquilo que basta. Talvez baste um poema, uma coisa mínima, viva, nossa, uma coisa sub-reptícia para empunhar diante do implacável acordo das formas exteriores. Também pode ser que nada baste. E nesse caso tanto faz escrever um romance ou cem poemas ou apenas um poema, ou ler ou emendar o céu astronómico ou manter-se parado no meio de um jardim húmido e silencioso, à noite. Até pode suceder que a morte não seja bastante. E isto sim é interrogativo.

Herberto Helder, "(Auto-)Entrevista", Público, 4 Dezembro 1990

Catherine

Em casa dos Maheu, no número dezesseis do segundo grupo de casas, tudo era sossego. O único quarto do primeiro andar estava imerso nas trevas, como se estas quisessem esmagar com seu peso o sono das pessoas que se pressentiam lá, amontoadas, boca aberta, mortas de cansaço. Apesar do frio mordente do exterior, o ar pesado desse quarto tinha um calor vivo, esse calor rançoso dos dormitórios, que, mesmo asseados, cheiram a gado humano.

O cuco da sala do térreo deu quatro horas, mas ninguém se moveu. As respirações fracas continuaram a soprar, acompanhadas de dois roncos sonoros. Bruscamente, Catherine levantou-se. No seu cansaço, tinha ela, pela força do hábito, contado as quatro badaladas que atravessaram o soalho, mas continuara sem o ânimo necessário para acordar de todo. Depois, com as pernas para fora das cobertas, apalpou, riscou um fósforo e acendeu a vela. Mas continuou sentada, a cabeça tão pesada que tombava nos ombros, cedendo ao desejo invencível de voltar ao travesseiro.

Agora, a vela iluminava o quarto, quadrado, com duas janelas, atravancado com três camas. Havia um armário, uma mesa e duas cadeiras de nogueira velha, cujo tom escuro manchava duramente as paredes pintadas de amarelo-claro. E nada mais, a não ser roupa de uso diário pendurada em pregos, uma moringa no chão ao lado de um tacho vermelho que servia de bacia. Na cama da esquerda, Zacharie, o mais velho, um rapaz de vinte e um anos, estava deitado com o irmão, Jeanlin, com quase doze anos; na da direita, dois pequenos, Lénore e Henri, a primeira de seis anos, o segundo de quatro, dormiam abraçados; Catherine partilhava a terceira cama com a irmã Alzire, tão fraca para os seus nove anos, que ela nem a sentiria ao seu lado, não fosse a corcunda que deformava as costas da pequena enferma. A porta envidraçada estava aberta, podiam-se ver o corredor do patamar e o cubículo onde pai e mãe ocupavam uma quarta cama, contra a qual tiveram de instalar o berço da recém-nascida, Estelle, de apenas três meses.

Entretanto, Catherine fez um esforço desesperado. Espreguiçava-se, crispava as mãos nos cabelos ruivos que se emaranhavam na testa e na nuca. Franzina para os seus quinze anos, não mostrava dos membros senão uns pés azulados, como tatuados com carvão, que saíam da bainha da camisola estreita, e braços delicados, alvos como leite, contrastando com a cor pálida do rosto, já estragado pelas contínuas lavagens com sabão preto. 

Émile Zola, "Germinal"

Aprendi a viver

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,

a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.

Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.

Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.
Anna Akhmátova, "Antologia poética"

Nascimento

“Demora tanto, de Natal a Natal”... — queixava-se uma velhinha, das do Asilo, durante a festividade. Ainda pior, nesse prazo entremeavam-se os meses do tempo-de-frio, que amedrontam, assim como o vir de calores em excesso. Muitos dos recolhidos não podiam esperar dezembro, partiam para além, davam a alma. Todos lá não passavam de tênues sobreviventes, penduradinhos por um nada, apagáveis a qualquer sopro. — “A Sra. então não podia fazer por ano dois Natais?” — pois, queria aquela, conversadamente. Tinha de perguntar, já já, agora, que senão logo lhe esquecesse propor a ingente providência.

Simples se repetia a festa, voto de caridade, para dar maior realce a Deus; e uma demão de sonho. Aos resguardados hóspedes, reanimava com a expectação, o Natal sendo o que tocava a junto tempo a todos, o Natal era o que mais acontecia.

Tinham galinha ao almoço, divertido e aumentado; lembrava-lhes comer carne de porco, mas que fora em definitivo revogada, pois devido a que as enfermarias se enchiam, enquanto diversos iam para a extrema-unção e o enterro. Provavam sobremesas gostosas, abriam-se para eles garrafas de refrescos. Alguns permaneciam meio encolhidos, no receio de molharem as roupas. Ou calavam quantas habituais dores, nos quadris e entrecostelas, nas pernas: quando alto respondiam, ásperos, seria aproveitando correto modo de desabafo, substituição do gemer. Vários se tapavam também de surdez, em vários graus.

Por esses motivos, e mais os demais, adivinháveis, pronto-se agastavam, contestando e implicando, não era próprio da idade fornecê-los de simpatia humana, antes uma reima de desgosto essencial, em função de acrimônia. Desconfiavam-se reciprocamente. Também ideado não honrassem o fato da Natividade, culminador, aqui e, trans os séculos, em longes país e tempo. Apenas abençoavam, como a um risonho brinquedo, o Menino Jesus. Mesmo das antigas pessoas conhecidas e amadas, por certo só lhes restassem, infusas na memória, as silhuetas mais longas.

Mas aguardavam as dádivas. Tudo então parecia invento.

Armava-se no meio do salão-grande um estrado, onde ficava a Diretora, mais outras pessoas de fora, mocinhas e moças que operavam a distribuição; as que vinham lá com gentil benevolência e coração de esquentar invernos. Nas cadeiras, por filas, os velhos e velhas jubilados sentavam-se, em volta. Tão passados, alguns, que com infinito cuidado tinham de ser colocados nos respectivos assentos.

Até macróbios casais, pares para bodas de brilhantes. — “Minha boa Irmã...” — um velhote pedia, mansamente irado — “...mande minha mulher me dar atenção, ela está só conversando com esse aí outro sujeito...” — e ainda proferia que nem por muito parava caduco, e que era o marido dela, por ordem de Deus. Mas sua velhota sorrindo justificou-se, não o desamparava, apenas a cadeira é que ficara meio entortada para lá, ela não podia dar jeito. A irmã corrigiu-lhe a posição, voltou-a mesmo um pouco para o lado conjugal, a velhinha era anacrônica boneca, móvel assim, obedientemente.

Era decerto uma feita misturada assembleia, onde brancos e escuros, o de dizível família e o rústico ou gentuço, o antes remediado e o que pobrezinho sempre, da miséria cristã. Igualavam-se, porém, em gelhas, cãs, murchidão, agruras, como se a velhice tivesse sua própria descor, um odor, uma semelhança: sagradas as feições pela fadiga e gasto, vida cumprida.

Enfim palpitavam de insofrimento, querendo: as trêmulas mãos paralelas — no apanhar seu regalo — cada um com esperançazinha de que diferente e melhor que os outros, festejavam-se-lhes os olhos. Os presentes de pequena valia, sabonetes, espelhos miúdos, qualquer tutaméia ou til, embrulhados em lenços grandes, dos que são uso de velhos, de que as velhinhas gostam.

— “O meu, o meu?!” — indagava a já ceguinha nublada, do lenço-grande que Papai Noel e o Menino Jesus lhe estavam dando. Seu gosto era por um amarelo, com pintinhas vermelhas — atendia a que recordações?

Exultando outra: — “E é uma menina, meu Deus! é uma menininha loura, que vem me entregar o mimo!...” — frequentava com fadas.

Soavam antiquados risos, todos reenriquecidos, então, e assim, passeava-se o adejo do Natal, entre bandeirinhas jucundas, idosas, em avenidas de flinflas flores.

A cerimônia terminada, se deu fé de uma coisa, sua notícia perpassou pelas sutis vividas criaturas, algo a chamejar-lhes a atenção. Era a respeito de uma, tão desditosinha anciã, que, pouco antes — logo na santificada data de regozijos, naquela hora, esperada o ano inteiro — não escolhera para grave adoecer.

Soube-se, ela estava em sua cama, reperdida dos sentidos, extremamente só. Talvez com apenas uns minutos creditados, podia retombar toda para o lado de lá, a qualquer momento. Tinham deixado seu presente, seu lenço, ali à beira, a ver se ela voltaria a si, nem que por intervalo, para o ver, apalpar e apreciar.
Oh, isso logo passava a fazer parte do Natal, isso era o que era preciso! Aquela pousava como num berço, quietalma, era mesmo, estava pronta para o milagre, um milagrinho, prodígios.

Alvoroçavam-se, queriam ir todas e todos para lá, andando por si ou carregados, cá fora se ajuntavam, cochichavam, comentavam, simulânimes, com tenaz graça; se os deixassem entupiam o pequeno quarto. Se bem que sem nenhum descuido se agarrassem com seus enrolados presentes, só por ora se distraíam deles. Era um equilíbrio, se abriam ao que pintado maior em todas as estampas, tlintassem sinos, noel, natal, o presépio se alumiasse, tinidamente.

Sim — que a velhinha, dormedormindo, fugazmente despertasse, o necessário instante, lúcida entre duas mortes, isto é, que pudesse receber seu regalo e dom, antes de continuar.

Guimarães Rosa, "Ave, palavra"

Ler pouco, crescer pouco

A redução da pobreza e da extrema pobreza no Brasil para os níveis mais baixos já aferidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deveria instilar-nos algum otimismo, de que tanto carecemos nestes tempos. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, entre 2022 e 2023, 8,7 milhões de brasileiros deixaram a linha de pobreza, outros 3,1 milhões saíram da condição de miséria e a proporção da população considerada pobre diminuiu de 31,6% para 27,4%. O aquecimento do mercado de trabalho e o pagamento de benefícios sociais, como os vinculados ao Bolsa Família, são apontados como fatores decisivos para a melhora, o que mostra a importância desses programas.

Muito lentamente, as condições de vida estão melhorando para a população mais sacrificada nos tempos de dificuldades e nem sempre suficientemente recompensada nos períodos de prosperidade. Mas persiste um quadro social inquietante, dominado por um imenso contingente de pobres. Ainda há 59 milhões de brasileiros sobrevivendo com menos de R$ 22,17 por dia. Mais de um quarto da população é muito pobre.

As piores consequências da deformada distribuição de renda no País têm sido atenuadas por programas sociais e de serviços públicos, especialmente na saúde. Mais eficácia poderia ser alcançada com medidas no campo tributário, mas, por conhecidas dificuldades no seu relacionamento com um Congresso de nítido perfil conservador, o governo não mostrou disposição de avançar nesse rumo.

São, reconheça-se, caminhos alternativos. O central é óbvio: oferecer a todos as condições para progredir por meio de uma educação inclusiva e formadora de cidadãos aptos a desempenhar com competência e consciência seu papel econômico, social e político.


Não há motivos para animar os que se preocupam com o futuro. No campo da educação, parece que decidimos parar ou caminhar para trás. É entristecedor saber que o País, onde se lê pouco, perdeu 6,7 milhões de leitores em cinco anos. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (feita pelo Instituto Pró-Livro, Ipec e Itaú Cultural) constatou pela primeira vez que a maioria dos brasileiros não lê livros.

Falta de tempo, mais dedicação à internet, televisão e outros motivos foram apontados para a queda no número de leitores. Quaisquer que sejam as razões, é um fato preocupante. Baixo índice de leitura significa menor compreensão do mundo em que se vive, mais dificuldades no acesso a melhores postos de trabalho e nas demais atividades da vida em sociedade.

O problema é mais profundo. Mesmo quem lê entende mal o que lê, como aponta há tempos o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), estudo comparativo realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No último relatório, relativo a 2022 e divulgado no ano passado, o Brasil manteve os resultados alcançados em 2018 em matemática, leitura e ciências.

Com otimismo, pode-se dizer que o Brasil mostrou resistência na pandemia da covid19. Não piorou. Mas isso pouco significa. Em 16 países que fazem parte da OCDE, a média em 2018 foi de 487 pontos em proficiência em leitura; estudantes brasileiros de 15 anos registraram média de 413 pontos. Esses números mostram que os estudantes brasileiros não aprenderam a interpretar o que leem (quando leem, pois o índice de leitura está em queda, como vimos acima) e não estão habituados a ler outras obras além dos livros didáticos ou as exigidas pela escola.

É claro que os resultados variam de acordo com a situação econômica e social das famílias. Desigualdades sociais estão por trás de resultados desiguais alcançados por estudantes pertencentes a famíforum@estadao.com lias de diferentes situações econômicas. Uma pesquisa do Insper sobre a democratização da educação profissional e tecnológica constatou que estudantes de nível econômico e social mais baixo têm menor acesso a esse tipo de ensino. E esse grupo social é justamente o que mais poderia se beneficiar com o acesso à educação profissional e tecnológica.

Critérios para a ação do Ministério da Educação anunciados pelo ministro Camilo Santana apontam o caminho correto, com prioridade para alfabetização na idade certa, educação em tempo integral, permanência do jovem na escola e melhoria na formação inicial e continuada dos professores.

Talvez devêssemos concentrar atenção no último item. Causa desassossego ter de concordar com o editorial Professores que não sabem ensinar publicado pelo Estadão (13/12). Não se trata de inculpar o professor, mas de defendê-lo. Ele é vítima de um círculo vicioso, formado por salários inadequados, falta de reconhecimento social de seu papel vital na formação das pessoas, desrespeito nos locais de trabalho, desestímulo ao bom preparo didático e ao aperfeiçoamento, baixa qualidade do ensino, alunos mal preparados e baixos salários. Esse círculo precisa ser rompido, e com urgência.

terça-feira, dezembro 17

Não use, pense

 


Macondo

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídas na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo. Todos os anos, lá pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava sua tenda perto da aldeia e com um grande alvoroço de apitos e tímbalos mostrava as novas invenções. Primeiro levaram o ímã. Um cigano corpulento, de barba indomada e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública do que ele mesmo chamava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos e todo mundo se espantou ao ver que os caldeirões, as caçarolas, os alicates e os fogareiros caíam de onde estavam, e as madeiras rangiam por causa do desespero dos pregos e parafusos tentando se soltar, e até mesmo os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria” — apregoava o cigano com sotaque áspero —, “é só questão de despertar suas almas.” José Arcádio Buendía, cuja desaforada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e muito além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquela invenção inútil para desentranhar ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, avisou: “Para isso, não serve.” Mas naquele tempo José Arcádio Buendía não acreditava na honradez dos ciganos, e trocou sua mula e uma partida de bodes pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para espichar o minguado patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Dentro de muito pouco haverá ouro de sobra para ladrilhar esta casa”, replicou seu marido. Durante vários meses se empenhou em demonstrar o acerto de suas conjecturas. Explorou a região palmo a palmo, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o sortilégio de Melquíades. A única coisa que conseguiu foi desenterrar uma armadura do século XV com todas as suas partes soldadas por uma casca de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcádio Buendía e os quatro homens de sua expedição conseguiram desmontar a armadura, encontraram dentro dela um esqueleto calcificado que levava dependurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher.


Em março os ciganos voltaram. Dessa vez traziam uma luneta e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como sendo o último descobrimento dos judeus de Amsterdã. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram a luneta na tenda. A troco de cinco pesos, as pessoas chegavam até a luneta e viam a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Daqui a pouco, o homem vai poder ver o que acontece em qualquer lugar da terra sem sair de casa.” Num meio-dia ardente fizeram uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca: juntaram um montão de capim seco no meio da rua e puseram fogo por meio da concentração dos raios solares. José Arcádio Buendía, que ainda não tinha acabado de se consolar do fracasso de seus ímãs, concebeu a ideia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas acabou aceitando os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial a troco da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro que seu pai tinha acumulado ao longo de uma vida inteira de privações e que ela havia enterrado debaixo da cama à espera de uma boa ocasião para investi-las. José Arcádio Buendía, entregue por inteiro às suas experiências táticas com a abnegação de um cientista e até mesmo pondo em risco a própria vida, nem tentou consolá-la. Tratando de demonstrar os efeitos da lupa sobre a tropa inimiga, ele se expôs à concentração de raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito a curar. Enfrentando os protestos de sua mulher, alarmada por tão perigosa inventiva, quase incendiou a casa. Passava longas horas em seu quarto, fazendo cálculos sobre as possibilidades estratégicas de sua arma inovadora, até que conseguiu elaborar um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível. Despachou-o para as autoridades acompanhado de numerosos depoimentos sobre suas experiências e de vários maços de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, se extraviou em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer debaixo do açoite das feras, do desespero e da peste, até conseguir um atalho para encontrar as mulas do correio. Apesar de, naquele tempo, a viagem até a capital ser pouco menos que impossível, José Arcádio Buendía prometia tentar chegar lá assim que recebesse ordens do governo, com o objetivo de fazer demonstrações práticas de seu invento diante dos poderes militares e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou pela resposta. No fim, cansado de esperar, lamentou-se com Melquíades do fracasso de sua iniciativa, e o cigano deu então uma prova convincente de honradez: devolveu a ele os dois dobrões em troca da lupa, e além disso deixou uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse tirar bom proveito do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcádio Buendía passou os longos meses de chuva trancado num quartinho que construiu nos fundos da casa para que ninguém perturbasse suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, passou noites inteiras no quintal vigiando os astros e quase contraiu uma insolação por tentar estabelecer o método exato para achar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo de seus instrumentos, chegou a uma noção do espaço que permitiu a ele navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem a necessidade de abandonar seu gabinete. Foi nessa época que adquiriu o hábito de falar sozinho, zanzando pela casa sem se importar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças se arrebentavam de trabalhar na horta cuidando da banana e da batata-doce, do aipim e do inhame, da abóbora e da berinjela. De repente, sem nenhum aviso, sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Passou vários dias feito um enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa uma fieira de assombrosas conjecturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Finalmente, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de um golpe só toda a carga de seu tormento. As crianças haveriam de recordar pelo resto de sua vida a augusta solenidade com que seu pai sentou-se à cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela ferida aberta de sua imaginação, e revelou a elas sua descoberta:

— A terra é redonda feito uma laranja.

Úrsula perdeu a paciência. “Se é para ficar louco, pois que fique você, sozinho”, gritou. “Não trate de pregar nas crianças suas ideias de cigano.” José Arcádio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher, que numa explosão de cólera estraçalhou o astrolábio no chão. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens da aldeia e demonstrou a eles, com teorias que para todos eram incompreensíveis, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre rumo ao Oriente. A aldeia inteira estava convencida de que José Arcádio Buendía havia perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr as coisas em ordem. Ele exaltou em público a inteligência daquele homem que através da pura especulação astronômica havia construído uma teoria já comprovada na prática, embora até então desconhecida em Macondo, e como prova de sua admiração deu a ele um presente que haveria de exercer uma influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.

Naquela altura, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Em suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcádio Buendía. Mas, enquanto José Arcádio conservava sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia arruinado por um mal tenaz. Era, na verdade, o resultado de múltiplas e raras doenças contraídas em suas incontáveis viagens ao redor do mundo. Segundo ele mesmo contou a José Arcádio Buendía enquanto o ajudava a montar o laboratório, a morte o seguia por todos os lugares, pisando seus calcanhares, mas sem se decidir a dar o golpe final. Era um fugitivo de todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano. Sobrevivera à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto da Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso, que dizia possuir o código de Nostradamus, era um ser lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e preto, como as asas esticadas de um corvo, e um colete de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas apesar de sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o mantinha enredado nos minúsculos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes percalços econômicos e havia deixado de rir fazia muito tempo, porque o escorbuto tinha arrancado seus dentes. No sufocante meio-dia em que revelou seus segredos, José Arcádio Buendía teve a certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com seus relatos fantásticos. Aureliano, que não tinha mais que cinco anos, haveria de recordá-lo pelo resto da vida do jeito que o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, alumbrando com sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto deixava jorrar pela sua fronte a gordura derretida pelo calor. José Arcádio, seu irmão mais velho, haveria de transmitir aquela imagem maravilhosa, como uma recordação hereditária, a toda a sua descendência. Úrsula, porém, conservou uma lembrança desagradável daquela visita, porque entrou no quarto no momento em que Melquíades quebrou por distração um frasco de bicloreto de mercúrio.

— É o cheiro do demônio — disse ela.

— De jeito nenhum — corrigiu Melquíades. — Está comprovado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto aqui não passa de um pouco de sublimado corrosivo.

Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtudes diabólicas do sulfeto de mercúrio, mas Úrsula não lhe deu importância: levou as crianças para rezar. Aquele cheiro forte de aguarrás ficaria para sempre em sua memória, vinculado à lembrança de Melquíades.

O laboratório rudimentar — sem contar uma profusão de caçarolas, funis, retortas, filtros e coadores — era composto por uma tubulação primitiva, uma proveta de cristal de gargalo comprido e estreito, imitação do ovo filosofal, e um destilador construído pelos próprios ciganos de acordo com as descrições modernas do alambique de três braços de Maria, a Judia. Além dessas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais correspondentes aos sete planetas, as fórmulas de Moisés e de Zósimo para a duplicação do ouro, e uma série de anotações de desenhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem soubesse interpretá-los tentar a fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro, José Arcádio Buendía cortejou Úrsula durante várias semanas, para que o deixasse desenterrar suas moedas coloniais e multiplicá-las tantas vezes quanto fosse possível subdividir o azougue. Úrsula cedeu, como sempre, diante da inquebrantável obstinação do marido. Então José Arcádio Buendía jogou trinta dobrões numa caçarola e os fundiu com raspa de cobre, sulfato de arsênico, enxofre e chumbo. Pôs tudo para ferver em fogo forte num caldeirão de óleo de rícino até obter um xarope espesso e pestilento mais parecido com uma calda banal do que com o ouro magnífico. Em temerários e desesperados processos de destilação, fundida com os sete metais planetários, trabalhada com o mercúrio impenetrável e com o vitríolo do Chipre, e cozida de novo em banha de porco na falta de óleo de nabo, a preciosa herança de Úrsula ficou reduzida a um torresmo carbonizado que não se soltou do fundo do caldeiro.

Quando os ciganos voltaram, Úrsula havia predisposto contra eles a população inteira. Mas a curiosidade foi mais forte que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a aldeia fazendo um ruído ensurdecedor com tudo que é tipo de instrumento musical, enquanto o pregoeiro anunciava a exibição do mais fabuloso achado dos antigos de Nacianço. E todo mundo foi até a tenda, e mediante o pagamento de um centavo todos viram um Melquíades juvenil, reposto, desenrugado, com uma dentadura nova e radiante. Quem recordava suas gengivas destruídas pelo escorbuto, suas faces flácidas e seus lábios murchos, estremeceu de pavor diante daquela prova determinante dos poderes sobrenaturais do cigano. O pavor se converteu em pânico quando Melquíades tirou os dentes, intactos, engastados nas gengivas, e mostrou-os ao público por um instante — um instante fugaz em que voltou a ser o mesmo homem decrépito dos anos anteriores — e colocou-os outra vez e sorriu de novo com um domínio pleno da juventude restaurada. Até mesmo o próprio José Arcádio Buendía considerou que os conhecimentos de Melquíades haviam chegado a extremos intoleráveis, mas deixou-se levar por um saudável alvoroço quando o cigano explicou a ele, a sós, o mecanismo da dentadura postiça. Aquilo pareceu-lhe ao mesmo tempo tão simples e prodigioso, que da noite para o dia perdeu todo interesse nas investigações de alquimia; sofreu uma nova crise de mau humor, não tornou a comer de forma regular e passava o dia dando voltas pela casa. “No mundo estão acontecendo coisas incríveis”, dizia a Úrsula. “Ali mesmo, do lado de lá do rio, existe tudo que é tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo feito burros.” Quem o conhecia desde os tempos da fundação de Macondo se assombrou com o quanto ele havia mudado debaixo da influência de Melquíades.

No começo, José Arcádio Buendía era uma espécie de patriarca juvenil, que dava instruções para o plantio e conselhos para criar filhos e animais e colaborava com todos, inclusive no trabalho físico, para os avanços da comunidade. E como sua casa foi desde o primeiro momento a melhor da aldeia, as outras foram arrumadas à sua imagem e semelhança. Tinha uma salinha ampla e bem iluminada, uma sala de jantar na forma de terraço com flores de cores alegres, dois dormitórios, um quintal com uma castanheira gigantesca, um jardim bem plantado, com horta e pomar, e um curral onde viviam em comunidade pacífica os bodes, os porcos e as galinhas. Os únicos animais proibidos não só na casa, mas na aldeia inteira, eram os galos de briga.

A diligência de Úrsula andava passo a passo com a de seu marido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, e que em nenhum momento de sua vida alguém ouviu cantar, parecia estar em todas as partes do amanhecer até alta noite, sempre perseguida pelo suave sussurro de suas anáguas rendadas. Graças a ela, os chãos de terra batida, os muros de barro sem caiar, os rústicos móveis de madeira construídos por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde era guardada a roupa exalavam um perfume morno de alfavaca.

José Arcádio Buendía, que era o homem mais empreendedor que a aldeia conheceu e jamais veria outro igual, havia disposto de tal modo a posição das casas que de todas elas era possível chegar ao rio e abastecer-se de água com o mesmo esforço, e traçou as ruas com tanta sabedoria que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Em poucos anos, Macondo foi a aldeia mais arrumada e laboriosa que qualquer outra que seus 300 habitantes tivessem conhecido. Era de verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém tinha morrido.
Gabriel García Márquez, "Cem anos de solidão"