sexta-feira, abril 26

Em outro mundo

 


Refúgio

Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e na floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada das alturas das árvores, e no meio desse bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada no chão bordando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam realmente, as borboletas cheias de grandes asas enfeitadas e o leão amarelo com manchas – mas essas manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo, pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. Por aí se vê quanto é precisa a minha visão. O bom dessa imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão. Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será a floresta (esta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e este eu conheço de antemão através do medo) – tão vazio que tanto me fará ir para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho a apreensão de lado, suspiro para me refazer, e fico toda gostando de minha intimidade com o leão e as borboletas: nenhum de nós pensa, a gente só gosta. Também eu, nessa visão-refúgio, não sou em preto e branco: sem que eu me veja, sei que para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles, o que os inquietaria, e nós não somos inquietantes. Sou com manchas azuis e verdes só para estas mostrarem que não sou azul nem verde – olha só o que não sou! A penumbra é de um verde-escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito por gosto de felicidade: quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê. Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto com prazer ao meu lugar de paz. Vou até repetir um pouco mais minha visão porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo pacífico e as borboletas voando caladas, eu sentada no chão bordando e nós assim cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.

Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Velhos de Lisboa

Em suma: somos os velhos,
cheios de cuspo e conselhos,
velhos que ninguém atura
a não ser a literatura
E outros velhos. (os novos
afirmam-se por maus modos
com os velhos). Senectude
é tempo não é virtude…
Decorativos? Talvez…
Mas por dentro “era uma
Vez…”
Velhas atrozes, saídas
de túgurios impossíveis,
disparam, raivoso, o dente
contra tudo e toda a gente.
Velhinhas de gargantilha
visitam o neto, a filha,
e levam bombons de creme
ou palitos “de la reine”.
A ler p’lo sistema Braille
Ó meus senhores escutai!
um velho tira dos dedos
profecias e enredos.

Outros mijam, fazem esgares,
têm poses e vagares
bem merecidos. Nos jardins,
descansam, depois, os rins.
Aqueleoutros (os coitados!)
imaginam-se poupados
pelo tempo, e às escondidas
partem p’ra novas sortidas…
Muito digno, o reformado
perora, e é respeitado
na leitaria: “A mulher
é em casa que se quer!”
Velhotes com mais olhinhos
que tu, fazem recadinhos,
pedem tabaco ao primeiro
e mostram pouco dinheiro…
E os que juntam capicuas
e fotos de mulheres nuas?
E os tontinhos, os gaiteiros,
que usam cravo e põem
cheiros?
(velhos a arrastar a asa
pago bem e vou a casa)
E a velha que se desleixa
e morre sem uma queixa?
E os que armam aos pardais
Nessas hortas e quintais?
(Quem acerta co’os botões
deste velho? Venha a cidade
ajudá-lo a abotoar
que não faz nada de mais!)

Velhos, ó meus queridos
velhos,
saltem-me para os joelhos:
vamos brincar?

Alexandre O’Neill

Imprevistos

Eu disse e repito: livros são tão vivos quanto as pessoas. Gritam, soluçam, silenciam, pregam, ensinam, sugerem, inspiram e podem ser usados, descartados e esquecidos.

Uma vez, quando tomei parte de uma homenagem ao professor Richard Moneygrand, em New Caledonia, Estados Unidos, depois das formalidades fui à sua casa para fechar a noite. Moneygrand estava muito feliz. Havia bebido bem, mas não perdera a compostura, pois nele o mero álcool apenas acentuava o seu desprendido amor pelos outros, inclusive pelos seus mais ferozes inimigos: o grupo contrário ao estudo do Brasil como algo distinto da “américa-latina” na sua universidade.

Na ocasião desse último trago, ele comentou comigo que havia tido uma conversa extraordinária com uma mulher e como essa criatura lhe fora simpática, amável e até mesmo atraente, apesar da idade. “Tive com ela – disse-me com um ar que transpirava a felicidade da ocasião – um encontro notável. Ela sabia muito da minha obra, conhecia alguns detalhes das minhas viagens ao Brasil e, mais que tudo, tinha simpatia pelas minhas opiniões. Mas veja como são as coisas… eu não me lembro do seu nome – como a memória é imprevista.”



“Dick – repliquei -, aquele senhora simpática era Lana, sua terceira esposa, lembra?” Meu velho mentor arregalou os olhos, soltou uma das suas vastas gargalhadas e após dar um beijinho na sua quarta ou quinta mulher (agora eu é que não lembro), a Susan Smith, já substituída por outras, repetiu o seu velho refrão: “A cada nova pesquisa e livro – uma esposa nova ou uma nova esposa!”. Disse ele piscando um olho muito azul em direção à minha cara de pateta, sempre paralisado pela culpa.

*

Voltemos, porém, aos livros. Eles são esquecidos, mas podem ser sempre lembrados, pois mudam as nossas vidas.

Não me esqueço da minha primeira leitura de Dom Casmurro, realizada numa aldeia apinaié pelos idos dos anos 60. Peguei o livro certo de que ele ia me conduzir ao sono que dribla a solidão, mas ocorreu o justo oposto. Fui enredado pelo texto até o amanhecer porque um lado meu queria ver Capitu castigada; enquanto um outro recordava um beijo enviesado, exatamente igual ao de Bentinho, e isso me fazia duvidar da infâmia da heroína, obrigando-me a desconfiar de uma exposição feita por um sujeito tão ciumento quanto eu.

*

Os leitores de Isaiah Berlin sabem como ele criticou modelos e verdades absolutas desde que, ainda criança, passou pelo trauma de testemunhar, em fevereiro de 1917, um grupo arrastando um policial czarista numa rua de Petrogrado. Sua trajetória intelectual, contada num memorável ensaio autobiográfico na The New York Review of Books (de maio de 1998), é uma confissão de como os livros dos grandes pensadores iluministas, produtores de certezas sobre as famosas leis da história e da sociedade – parte de uma philosophia perennis -, foram substituídos pelo encontro com o A Ciência Nova, de Giambattista Vico, e com os ensaios sobre a linguagem e a história de Johann Gottfried von Herder. Vico tornou Berlin consciente dos valores que fazem com que as ações tenham sentido para quem as faz. Para ele, o verdadeiro conhecimento não é saber como as coisas são, mas como as coisas são o que são. Um lugar somente alcançado quando se penetra nos motivos, temores, esperanças e ambições dos outros. Podemos fazer isso porque, como eles, somos humanos e também movidos por contradições, dúvidas e limites. Nossos imprevistos ajudam a compreender imprevistos. Com Herder, Berlin percebeu que culturas diferentes davam respostas diferentes a problemas igualmente diferentes. Ele, assim, aprendeu a duvidar de verdades eternas e inquestionáveis, supostamente corretas para todos os homens em todo tempo e lugar.

Esses fundadores da antropologia cultural, fizeram com que Isaiah Berlin duvidasse das ideias que se apresentavam como verdades objetivas escritas no céu e prontas para serem copiadas. A leitura de Vico e Herder revelou como as verdades eram criadas pelos homens. Valores não são encontrados, mas fabricados. Quando um poeta faz uma poesia em português ele não apenas usa a língua: ele a reinventa. Um membro de uma sociedade é uma expressão e, ao mesmo tempo, um fazedor da sua sociedade. A singularidade conta tanto ou mais do que o geral e o universal.

Lamento não ter espaço para elaborar essas desassossegadas ideias. Mas elas mostram como os livros, como as pessoas, falam, ensinam, influenciam e dizem coisas de modo tão concreto quanto um amigo ou um inimigo.

*

Na casa de Miriam e Eduardo Raposo, onde fui celebrar os elos de simpatia que cimentam o departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, ouvi do filho do casal, o Ian, a seguinte história:

“Professor Roberto, olhe o que me aconteceu. Estava na praia e dela brotou um hippie que vendia artesanato. Ele havia abandonado sua casa e família para viver na rua. Curioso, perguntei o que o havia feito tomar esse caminho. A resposta lhe interessa, professor. Ele me disse o seguinte: eu decidi largar tudo depois de ter lido um dos livros do Roberto DaMatta”.

– Qual? Perguntei entre o aflito e o curioso.

– Não me lembro. Talvez A Casa e a Rua ou Carnavais. Malandros e Heróis…

– É, pode ser… Concluí assustado com o poder dos livros.
Roberto Damatta

quinta-feira, abril 25

Objetivo único

 


O triunfo dos imbecis

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.

Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas – os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e bovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

A volta da tunga dos livreiros

Reapareceu no Senado a velha ideia de tabelar os livros. Ela circula há mais de dez anos e, em 2018, esteve perto de sair, tramitando pelo escurinho de Brasília. É um caso especial de tabelamento, pois, enquanto o costume é tabelar uma mercadoria para impedir que se cobre a mais, nessa girafa pretende-se impedir que o comerciante cobre menos.

Desta vez, a tentativa de tabelamento parte do Senado. Lá, a senadora Teresa Leitão desarquivou um velho projeto propondo que, ao lançar um livro, a editora estabeleça um preço. Nos primeiros 12 meses, as livrarias não podem oferecer descontos superiores a 10%. Vai-se além: numa segunda edição, o tabelamento vigoraria por outros seis meses.

No século passado, um jovem chamado Jeff Bezos trabalhava no mercado financeiro e queria mudar de vida. Foi a uma série de palestras de editores e livreiros, surpreendeu-se com a imperfeição daquele mercado e teve uma ideia: fundou a Amazon.

Começou num galpão em Seattle vendendo livros pela internet e deu no que deu. Bezos revolucionou o mercado de livros e o próprio varejo. Entrega rápido e dá descontos. Hoje a Amazon é a maior livraria do mundo. Estima-se que tenha conquistado metade do mercado de livros no Brasil. Em seu rastro, editoras e outras empresas criaram serviços de vendas on-line. Algumas, como a rede varejista Americanas, deram com os burros n’água. Foi-se ver, e a rede havia sido saqueada.

Todo o comércio de varejo passa pela destruição criadora do capitalismo. Num primeiro momento, os supermercados tomaram uma fatia do comércio às lojinhas da rua. Depois, veio o comércio eletrônico redesenhando a venda de livros a xampus. Mas só os livreiros querem tabelar seus produtos.

Os livreiros têm uma aura apostolar. Afinal, um livro não seria um sabonete. Ilusão. Livros, sabonetes e caminhões são mercadorias. Tanto é assim que, há muitos anos, quando era mais barato imprimir um livro na China, algumas editoras passaram a rodá-los em Xangai, trazendo os volumes para o Brasil. As duas maiores redes de livrarias nacionais quebraram, muito mais por causa de suas acrobacias financeiras que pela concorrência. Quando as grandes redes afogavam as pequenas livrarias, ninguém falava em tabelamento.

Reclama-se que o freguês vai a uma livraria, consulta os volumes e, ao voltar para casa, encomenda-o eletronicamente. Os comerciantes que fazem essa reclamação fazem compras on-line e não pensam em tabelar os sanduíches. Ademais, todas as grandes editoras têm operações de venda eletrônica. Se cobram mais caro ou forçam a venda de livros físicos em detrimento dos e-books (mais baratos), o problema é delas.

O tabelamento de livros existe em outros países, como França, Alemanha e Espanha. A ideia é ruim, mas deve-se admitir que essas nações funcionam direito. Valeria a pena copiar também seus sistemas de saúde e educação públicos. Copiando só o tabelamento dos livros, o Brasil correria atrás de uma jabuticaba passada. Replica-se o que há de pior, reprimindo o que há de novo.

O sonho de Coleridge

O fragmento lírico Kubla Khan (cinquenta e tantos versos rimados e irregulares, de prosódia requintada) foi sonhado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge em um dia de verão de 1797. Coleridge escreve que se havia retirado para uma granja nos confins de Exmoor, quando uma indisposição obrigou-o a tomar um hipnótico. O sono venceu-o momentos depois da leitura de Purchas, que narra a edificação de um palácio por Kubla Khan, o imperador que deve sua fama ocidental a Marco Polo. No sonho de Coleridge, o texto lido casualmente começou a germinar e a multiplicar-se; o homem que dormia intuiu uma série de imagens visuais, e, simplesmente, de palavras que as manifestavam. Ao cabo de algumas horas despertou com a certeza de haver composto, ou recebido, um poema de cerca de trezentos versos. Lembrava-se deles com singular clareza e conseguiu terminar um fragmento que figura em suas obras. Uma visita inesperada interrompeu-o e lhe foi impossível, depois disso, lembrar-se do resto.

“Descobri, com não pequena surpresa e mortificação — conta Coleridge — que embora retivesse de um modo vago a forma geral da visão, tudo o mais, salvo umas oito ou dez linhas soltas, havia desaparecido assim como as imagens na superfície de um rio no qual se joga uma pedra, porém — ai de mim! — sem a sua ulterior restauração”. Swinburne sentiu que o que fora resgatado representava o mais alto exemplo da música do inglês e que o homem capaz de analisá-lo poderia (a metáfora é de John Keats) destecer um arco-íris. As traduções ou resumos de poemas cuja virtude fundamental é a música, são vãs e podem ser prejudiciais; que nos baste reter, por agora, que a Coleridge foi dada em um sonho uma página de indiscutível esplendor.

Ouviu uma música; viu erguer-se o palácio e ouviu as palavras do poema.

O caso, ainda que extraordinário, não é o único. No estudo psicológico The World of Dreams, Havelock Ellis equiparou-o com o do violinista e compositor Giuseppe Tartini, que sonhou que o Diabo (seu escravo) executava no violino uma sonata prodigiosa; o sonhador, ao despertar, deduziu de sua lembrança imperfeita o Trillo dei Diavolo.

Outro exemplo clássico de cerebração inconsciente é o de Robert Louis Stevenson, a quem um sonho (segundo ele mesmo conta em Chapter on Dreams) lhe deu o argumento de Olalla e outro, em 1884, o de Dr. Jekill and Mr. Hyde. Tartini quis imitar na vigília a música de um sonho; Stevenson recebeu do sonho argumentos, quer dizer, formas gerais; mais afim à inspiração verbal de Coleridge é a que Beda o Venerável atribui a Caedmon (Historia ecclessiastica gentis Anglocum, IV, 24).

À primeira vista o sonho de Coleridge corre o risco de parecer menos assombroso que o de seu precursor. Kubla Khan é uma composição admirável e as nove linhas do hino sonhado por Coleridge quase não apresentam outra virtude além de sua origem onírica, porém, Coleridge já era um poeta e a Caedmon foi revelada uma vocação. Não obstante, há um fato anterior que magnifica até os limites do insondável a maravilha do sonho em que se engendrou Kubla Khan. Se este fato é verdadeiro, a história do sonho de Coleridge é anterior em muitos séculos a Coleridge e ainda não chegou ao seu fim.

O poeta sonhou em 1797 (outros acham que foi em 1798) e publicou o seu relato do sonho em 1806, a maneira de glosa ou justificativa do poema inconcluso. Vinte anos depois apareceu em Paris, fragmentariamente, a primeira versão ocidental de uma destas histórias universais em que a literatura persa é tão rica, o Compêndio de histórias de Rashid ed-Din, que data do século XIV. Em uma página se lê: “A leste de Shang-tu, Kubla Khan erigiu um palácio, segundo um plano que havia visto em um sonho e que guardava na memória”. Quem escreveu isto foi o vizir de Gashan Mahmud, que descendia de Kubla.

Um imperador mongol, no século XIII, sonha um palácio e o edifica conforme a visão; no século XVIII, um poeta inglês que não podia saber que esta construção se originou de um sonho, sonha um poema sobre o palácio. Confrontadas com essa simetria, que trabalha com almas de homens e abarca continentes, parecem-me significar nada ou muito para as levitações, as ressurreições e o aparecimento dos livros religiosos.

Que explicação preferimos? Aqueles que de antemão rechaçam o sobrenatural (eu trato sempre de pertencer a esse grupo) julgarão que a história dos dois sonhos é uma coincidência, um desenho traçado pelo acaso, como as formas de leões e de cavalos que as vezes configuram as nuvens. Outros arguirão que o poeta soube de algum modo que o imperador havia sonhado o palácio e disse ter sonhado o poema para criar uma esplêndida ficção que em si aplacasse ou justificasse o truncado e o rapsódico dos versos*. Esta conjectura é verossímil, porém nos obriga a postular, arbitrariamente, um texto não identificado por sinólogos no qual Coleridge tivesse podido ler, antes de 1816, o sonho de Kubla**. Mais encantadoras são as hipóteses que transcendem o racional. Por exemplo, é válido supor que a alma do imperador, uma vez destruído o palácio, penetrou na alma de Coleridge para que este o reconstruísse em palavras, mais duradouras que os mármores e metais.

O primeiro sonho acrescentou um palácio à realidade; o segundo que teve lugar cinco séculos depois, acrescentou um poema (ou um princípio de poema) sugerido pelo palácio. A semelhança dos sonhos deixa entrever um plano, e o período enorme revela um executor sobre-humano. Indagar o propósito desse imortal ou desse longevo seria, talvez, mais atrevido do que inútil, porém é lícito supor que isso não foi alcançado. Em 1691, o Pe. Gerbillon, da Companhia de Jesus, comprovou que do palácio de Kubla Khan somente restavam ruínas; do poema, consta-nos que somente se resgataram uns cinquenta versos. Tais fatos permitem conjeturar que a série de sonhos e de trabalhos não chegou ao seu fim. Ao primeiro sonhador lhe foi mostrada de noite a visão do palácio, e ele o construiu; ao segundo, que desconhecia o sonho do anterior, o poema sobre o palácio. Se o esquema não falhar, alguém, em uma noite das que nos separam os séculos, sonhará o mesmo sonho e não suspeitará que outros já o sonharam, e dará a ele a forma de um mármore ou de uma música.

Talvez a série de sonhos não tenha fim; talvez a chave esteja no último deles.
Já escrito o texto anterior, entrevejo, ou creio entrever, uma outra explicação. Talvez um arquétipo ainda não revelado aos homens, um objeto eterno (para usar a terminologia de Whitehead) esteja ingressando paulatinamente no mundo; sua primeira manifestação foi o palácio; a segunda, o poema. Quem os tivesse comparado teria visto que eram essencialmente iguais.
Jorge Luis Borges, "Livro de Sonhos"

* Em princípios do século XIX ou em fins do XVIII, Kubla Khan, no julgamento dos leitores de gosto clássico, era muito menos apreciado do que hoje em dia. Em 1884, Traill, que foi o primeiro biógrafo de Coleridge, escreveu: “O extravagante poema onírico Kubla Khan é pouco mais do que uma curiosidade psicológica”.
** Veja-se John I.ivingstone Lowes: The road to Xanandu, 1927, páginas 358, 585

Só os absurdos enriquecem a poesia

Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem
nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras
tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
e nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão
de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas
palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas
pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das águas e
dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.

Manoel de Barros, "Menino do mato"

quarta-feira, abril 24

Leitura preguiçosa

 


Eu estava ali deitado

Eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam na vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com a minha blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não falou nada ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e falou você não quer mesmo almoçar?

Eu falei que não quer comer nada? eu falei que não nem uma carninha assada daquelas que você gosta? com uma cebolinha de folha lá da horta um limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu também sorri mas falei que não estava com a menor fome nem uma coisinha meu filho? uma coisinha só? eu falei que não e então ela ficou me olhando e então ela saiu do quarto eu estava de sapatos e ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos engraxados bonitos brilhantes.

Ele não quer comer nada? escutei papai perguntando e mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela responder e agora eles estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto.

— Você precisa compreender isso, Carlos

— Não posso, Miriam

— Não daria certo

— Não daria certo?

— Nossos temperamentos não combinam

— Não é verdade

— Assim será melhor para nós dois

Não Miriam não é verdade Miriam não é certo Miriam não pode Miriam não pode não pode! ó meu Deus não pode.

Papai estava parado à porta pensei que você estava dormindo ele falou eu sorri que vento hem! ele falou e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e assustadas, fustigadas pelo vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado no meio do quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai dar uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri e ele riu e então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele eu sabia que ele queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me dizer mamãe devia ter dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso mas agora era diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado ficava atrapalhado quando queria conversar essas coisas com um filho e então esfregava as mãos não era por causa do frio Carlos eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei como é muito aborrecido mesmo mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então ele abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu sei que você gosta muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou pra mim não se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas você não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele tirou o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele perguntou e eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o portão e depois os passos dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava olhando para os meus sapatos ela gostava deles assim engraxados bonitos brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de você não pode calcular o tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma coisa se te acontecesse alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer nada bem vai? Não vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria eu gosto demais de você demais, demais.

Fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do Brasil e da Europa e recordei os nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e deitei de bruços e deitei do lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os braços ao corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através da vidraça as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de meu quarto.
Luiz Vilela

Saúde do cérebro: de jornais a livros

Assim como a atividade física regular é essencial para o corpo, o cérebro também precisa de um bom treino para se manter saudável. E a leitura de jornais, livros e revistas é um dos melhores exercícios para ele.

Diversos estudos científicos analisam os impactos de se manter o hábito da leitura. Trabalhos publicados nas últimas décadas mostram que ele não apenas é uma fonte de prazer, como previne o declínio cognitivo, doença de Alzheimer e outras formas de demência, reduz o estresse, gera mais empatia e impacta até mesmo na mortalidade de modo geral.

— A leitura demanda muita atenção, memória e raciocínio. E trabalha a parte de linguagem, de compreensão, vocabulário, o que também é muito positivo. Como consequência, é um estímulo robusto para criar uma reserva cognitiva, que é a capacidade do cérebro de se adaptar a lesões. Quem lê muito ao longo da vida cria mais circuitos neuronais, então tem vias alternativas para realizar uma determinada atividade quando há uma lesão, um desgaste, em alguma delas. Isso é muito estudado hoje — explica Raphael Spera, do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

Por isso, numa era em que a maioria dos textos lidos fazem parte de postagens curtas e superficiais em redes sociais e aplicativos de mensagens, Elisa Resende, vice-coordenadora do departamento científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), destaca que se aprofundar em conteúdos mais longos, e com maior grau de complexidade, pode ser uma boa estratégia para trabalhar o cérebro.

— Ler jornais, por exemplo, pode ser muito importante, tanto para combater fake news como para a manutenção da saúde cerebral. Porque além de serem conteúdos que passaram por um crivo, são textos geralmente mais longos, que vão estimular mais o cérebro do que pequenos textinhos no WhastApp. Além de ser um estímulo por manter a pessoa atualizada. Então nós recomendamos muito para os pacientes — afirma a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para os especialistas, quanto mais complexa a leitura for, maior será o benefício. Anne Crunfli, psicóloga especializada em transtornos de ansiedade pela Escola de Medicina da USP, defende que o ideal é diversificar, passear por diferentes estilos de textos que abordem temas variados.

— Quanto mais diversa for a leitura, melhor para o desenvolvimento cultural da pessoa. A leitura não deve ser apenas para entreter, mas sim para se desenvolver, temas diferentes ampliam o olhar e promovem conexão entre assuntos, aumentando os aprendizados. A leitura qualitativa auxilia na construção do pensamento crítico, criativo. É um exercício saudável para o cérebro e para a socialização — garante.

O melhor efeito para a saúde, pontuam os especialistas, é na redução do risco de doenças neurodegenerativas a longo prazo. Um trabalho publicado na revista científica Neurology, em 2022, analisou 38 estudos sobre o tema e identificou que atividades intelectuais, como ler por prazer, estão associadas a um risco 23% menor de demência. Por outro lado, um trabalho da Universidade de Columbia, nos EUA, descobriu que a perda cognitiva é quase três vezes mais comum entre adultos analfabetos.

Mas mesmo quem já está em fases mais avançadas da vida pode se beneficiar de começar um hábito de leitura. Outro estudo, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, identificou que idosos que relataram ler frequentemente tiveram um declínio cognitivo mais lento do que aqueles que não liam.

— Eu sempre recomendo aos meus pacientes. Mesmo aqueles que têm quadros de demência, prejuízo cognitivo. Especialmente nas fases iniciais dessas doenças, nós vemos benefícios tanto nos aspectos cognitivos, como no psicológicos — diz Spera.

Ler também proporciona uma melhor saúde mental. Ainda em 2009, um estudo da Universidade de Sussex, no Reino Unido, já havia mostrado que o hábito reduz o estresse em 68%, mais do que o observado ao ouvir música ou fazer uma caminhada, por exemplo.

— A leitura permite que fujamos de picos de dopamina, o prazer imediato que já nos vem pronto com as redes sociais. Esse excesso de estímulos nos deixa mais impulsivos, nervosos. Já a leitura, gera o contrário, ela estimula o foco, a imaginação, o aprendizado, a resiliência, porque não vem pronta, é preciso empenho para traduzir as palavras em conceitos coerentes, que façam sentido. Com isso, diminui o estresse, diminuindo a frequência cardíaca e aliviando a tensão dos músculos durante o processo — detalha Crunfli.

Um dos impactos mais marcantes dessas repercussões fisiológicas é na mortalidade. Uma pesquisa da Universidade de Yale, nos EUA, acompanhou um grupo por 12 anos e descobriu que aqueles que passaram até 3,5 horas por semana lendo tiveram um risco 17% menor de morrer. Os que liam mais do que isso tinham 23% menos chances de morrer em comparação com os que não liam.

Outro efeito positivo observado nos estudos é o aumento da empatia. Ainda em 2013, pesquisadores da New School for Social Research, nos EUA, publicaram na prestigiosa Science experimentos que revelaram que “a leitura de ficção literária aprimora um conjunto de habilidades e processos de pensamento fundamentais para relacionamentos sociais complexos — e sociedades funcionais”.

— Os estudos mostram essa capacidade de ter mais empatia, de se colocar no lugar do outro, de se sensibilizar mais. Quando você lê, você tem diversos personagens, histórias diferentes, e você se coloca no lugar desses pontos de vista — avalia Spera.

Em relação ao quanto é necessário para atingir os benefícios, Resende lembra que “qualquer leitura já é considerada positiva. Assim como acontece com o exercício físico, alguma coisa já é melhor do que nada”.

Para quem nunca teve o hábito, ou está numa famosa “ressaca literária” – quando é difícil iniciar um novo livro após terminar uma história arrebatadora –, Crunfli sugere ir aos poucos:

— Tente um número pequeno de páginas e vá aumentando sucessivamente. Caso contrário, torna-se insustentável. O foco é construir o hábito da leitura, e para isso é necessário que seja feito aos poucos e de maneira contínua.

De acordo com os especialistas, o mesmo vale para o jornal: comece pela sua editoria preferida e vá abrindo o leque e explorando novos assuntos.

Há dias

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer:
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

Eugénio de Andrade, " Os Lugares do Lume"

Canção de homens e mulheres lamentáveis

Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim...

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.


Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos...

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
Antônio Maria, "Com vocês, Antônio Maria"

terça-feira, abril 23

Livros, para que servem?


 

Página de diário

Leiria, 14 de Fevereiro de 1941


Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui durante algum tempo , a ser junto deles em corpo o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que seria difícil exprimir, e que há-de ser a terra da sua duração.

Eram quatro vultos. Um homem e três mulheres. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como sonâmbulos, a tocar uma música que sugeria não sei que vida livre e maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Uma música lírica e trágica ao mesmo tempo, que inundava a tarde fria de calor e da palpitação de um poema.

À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que caminhava à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que o seguiam.

Ninguém poderá saber jamais se eram todas suas esposas, filhas ou mães. Sílfides intemporais, rufavam, batiam, martelavam e criavam à voltado solista e do hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de irrealidade.

Passavam. O próprio chão tremia. Passaram. As próprias pedras pareceram ficar com saudades.

E quando lá longe, nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, como que se extinguiu no céu morto da cidade o clarão de uma estrela-cadente.

Miguel Torga, "Diário I"

A balada do falso Messias

Vai pôr vinho no copo. Suas mãos agora estão enrugadas e tremem. Mas ainda me impressionam, essas mãos grandes e fortes. Comparo-as com as minhas, de dedos curtos e grossos, e admito que nunca o compreendi e nunca chegarei a compreendê-lo.

Encontrei-o pela primeira vez a bordo do Zemlia. Nesse velho navio, nós, judeus, estávamos deixando a Rússia; temíamos os pogroms. Acenavam-nos com a promessa da América e para lá viajávamos, comprimidos na terceira classe. Chorávamos e vomitávamos, naquele ano de 1906. Eles já estavam no navio, quando embarcamos. Shabtai Zvi e Natan de Gaza. Nós os evitávamos. Sabíamos que eram judeus, mas nós, da Rússia, somos desconfiados. Não gostamos de quem é ainda mais oriental do que nós. E Shabtai Zvi era de Esmirna, na Ásia Menor — o que se notava por sua pele morena e seus olhos escuros. O capitão nos contou que ele era de uma família muito rica. De fato, ele e
Natan de Gaza ocupavam o único camarote decente do barco. Então, por que iam para a América? Por que fugiam? Perguntas sem resposta. Natan de Gaza, um homem pequeno e trigueiro, despertava-nos particularmente a curiosidade. Nunca tínhamos visto um judeu da Palestina de Eretz Israel — uma terra que para muitos de nós só existia em sonhos. Natan, um orador eloquente, falava para um público atento sobre as suaves colinas da Galileia, o belo lago Kineret, a histórica cidade de Gaza, onde ele nascera, e cujas portas Sansão tinha arrancado.

Bêbado, porém, amaldiçoava a terra natal: “Pedras e areia, camelos, árabes ladrões...”. Ao largo das ilhas Canárias, Shabtai Zvi surpreendeu-o maldizendo Eretz Israel. Surrou-o até deixá-lo caído no chão, sangrando; quando Natan ousou protestar, demoliu-o com um último pontapé.

Depois disso passou dias trancado no camarote, sem falar com ninguém. Passando por ali ouvíamos gemidos... e suspiros... e suaves canções. Uma madrugada acordamos com os gritos dos marinheiros. Corremos ao convés e lá estava Shabtai Zvi nadando no mar gélido. Baixaram um escaler e a custo conseguiram tirá-Lo da água. Estava completamente nu e assim passou por nós, de cabeça erguida, sem nos olhar — e foi se fechar no camarote. Natan de Gaza disse que o banho fora uma penitência, mas nossa conclusão foi diferente: “É louco, o turco”.

Chegamos à ilha das Flores, no Rio de Janeiro, e de lá viajamos para Erexim, de onde fomos levados em carroções para os nossos novos lares, na colônia denominada Barão Franck, em homenagem ao filantropo austríaco que patrocinara nossa vinda. Éramos muito gratos a este homem que, aliás, nunca chegamos a conhecer. Alguns diziam que nas terras em que estávamos sendo instalados mais tarde passaria uma ferrovia, cujas ações o barão tinha interesse em valorizar. Não acredito. Acho que era um bom homem, nada mais. Deu a cada família um lote de terra, uma casa de madeira, instrumentos agrícolas, animais. Shabtai Zvi e Natan de Gaza continuavam conosco. Receberam uma casa, embora ao representante do barão não agradasse a ideia de ver os dois juntos sob o mesmo teto.

— Precisamos de famílias — disse incisivamente — e não de gente esquisita.
Shabtai Zvi olhou-o. Era tal a força daquele olhar que ficamos paralisados. O agente do barão estremeceu, despediu-se de nós e partiu apressadamente.

Lançamo-nos ao trabalho.

Como era dura a vida rural! A derrubada de árvores. A lavra. A semeadura... Nossas mãos se enchiam de calos de sangue.

Durante meses não vimos Shabtai Zvi. Estava trancado em casa. Aparentemente o dinheiro tinha acabado, porque Natan de Gaza perambulava pela vila, pedindo roupas e comida. Anunciava para breve o ressurgimento de Shabtai Zvi trazendo boas novas para toda a população. — Mas o que é que ele está fazendo? — perguntávamos.

O que estava fazendo? Estudava. Estudava a Cabala, a obra-prima do misticismo judaico: o Livro da Criação, o Livro do Brilho, o Livro do Esplendor. O ocultismo. A metempsicose. A demonologia. O poder dos nomes (os nomes podem esconjurar demônios; quem conhece o poder dos nomes pode andar sobre a água sem molhar os pés; e isso sem falar da força do nome secreto, inefável e impronunciável de Deus). A ciência misteriosa das letras e dos números (as letras são números e os números são letras; os números têm poderes mágicos; quanto às letras, são os degraus da sabedoria). É então que surge em Barão Franck o bandido Chico Diabo. Vem da fronteira com seus ferozes sequazes. Fugindo dos “Abas Largas”, esconde-se perto da colônia. E rouba, e destrói, e debocha. Rindo, mata nossos touros, arranca-lhes os testículos, e come-os, levemente tostados. E ameaça matar-nos a todos se o denunciarmos às autoridades. Como se não bastasse esse infortúnio, cai uma chuva de granizo que arrasa as plantações de trigo. Estamos imersos no mais profundo desespero quando Shabtai Zvi reaparece.

Está transfigurado. O jejum devastou-lhe o corpo robusto, os ombros estão caídos. A barba agora, estranhamente grisalha, chega à metade do peito. A santidade envolve-o, brilha em seu olhar.

Caminha lentamente até o fim da rua principal... Nós largamos nossas ferramentas, nós saímos de nossas casas, nós o seguimos. De pé sobre um montículo de terra, Shabtai Zvi nos fala.

— Castigo divino cai sobre vós!

Referia-se a Chico Diabo e ao granizo. Tínhamos atraído a ira de Deus. E o que poderíamos fazer para expiar nossos pecados?

— Devemos abandonar tudo: as casas; as lavouras; a escola; a sinagoga; construiremos, nós mesmos, um navio — o casco com a madeira de nossas casas, as velas com os nossos xales de oração. Atravessaremos o mar. Chegaremos à Palestina, a Eretz Israel; e lá, na santa e antiga cidade de Sfat, construiremos um grande templo.

— E aguardaremos lá a chegada do Messias? — perguntou alguém com voz trêmula. — O Messias já chegou! — gritou Natan de Gaza.

— O Messias está aqui! O Messias é o nosso Shabtai Zvi!

Shabtai Zvi abriu o manto em que se enrolava. Recuamos, horrorizados. Víamos um corpo nu, coberto de cicatrizes; no ventre, um cinturão eriçado de pregos, cujas pontas enterravam-se na carne. Desde aquele dia não trabalhamos mais. O granizo que destruísse as plantações. Chico Diabo que roubasse os animais, porque nós íamos embora. Derrubávamos as casas, jubilosos. As mulheres costuravam panos para fazer as velas do barco. As crianças colhiam frutas silvestres para fazer conservas. Natan de Gaza recolhia dinheiro para, segundo dizia, subornar os potentados turcos que dominavam a Terra Santa.

— O que está acontecendo com os judeus? — perguntavam-se os colonos da região. Tão intrigados estavam que pediram ao padre Batistella para investigar. O padre veio ver-nos; sabia de nossas dificuldades, estava disposto a nos ajudar.

— Não precisamos, padre — respondemos com toda a sinceridade. — Nosso Messias chegou; ele nos libertará, nos fará felizes.

— O Messias? — o padre estava assombrado. — O Messias já passou pela terra. Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, que transformou a água em vinho e morreu na cruz por nossos pecados.

— Cala-te, padre! — gritou Santa. — O Messias é Shabtai Zvi! Santa, filha adotiva do gordo Leib Rubin, perdera os pais num pogrom. Ficara então com a mente abalada. Seguia Shabtai Zvi por toda a parte, convencida de que era a esposa reservada para o Ungido do Senhor. E para surpresa nossa Shabtai Zvi aceitou-a: casaram-se no dia em que terminamos o casco do barco. Quanto à embarcação, ficou muito boa; pretendíamos levá-la ao mar, como Bento Gonçalves transportara seu navio, sobre uma grande carreta puxada por bois.

Estes já eram poucos. Chico Diabo aparecia agora todas as semanas, roubando duas ou três cabeças de cada vez. Alguns falavam em enfrentar os bandidos. Shabtai Zvi não aprovava a ideia. “Nosso reino está além do mar. E Deus vela por nós. Ele providenciará.”

De fato: Chico Diabo desapareceu. Durante duas semanas trabalhamos em paz, ultimando os preparativos para a partida. Então, num sábado pela manhã, um cavaleiro entrou a galope na vila. Era Gumercindo, lugar-tenente de Chico Diabo.

— Chico Diabo está doente! — gritou, sem descer do cavalo. — Está muito mal. O doutor não acerta com o tratamento. Chico Diabo me mandou levar o santo de vocês para curar ele.

Nós o rodeávamos em silêncio.

— E se ele não quiser ir — continuou Gumercindo — é para nós queimar a vila toda. Ouviram?

— Eu vou — bradou uma voz forte.

Era Shabtai Zvi. Abrimos caminho para ele. Aproximou-se lentamente, encarando o bandoleiro.

— Apeia.

Gumercindo desceu do cavalo. Shabtai Zvi montou.

— Vai na frente, correndo.

Foram os três: primeiro Gumercindo, correndo; depois Shabtai Zvi a cavalo; e fechando o cortejo, Natan de Gaza montado num jumento. Santa também quis ir mas Leib Rubin não deixou.

Ficamos reunidos na escola todo o dia. Não falávamos; nossa angústia era demasiada. Quando caiu a noite ouvimos o trote de um cavalo. Corremos para a porta. Era Natan de Gaza, esbaforido.

— Quando chegamos lá — contou — encontramos Chico Diabo deitado no chão. Perto dele, um curandeiro fazia mandingas. Shabtai Zvi sentou perto do bandido. Não disse nada, não fez nada, não tocou no homem — só ficou olhando. Chico Diabo levantou a cabeça, olhou para Shabtai Zvi, deu um grito e morreu. O curandeiro, eles mataram ali mesmo. De Shabtai Zvi nada sei. Vim aqui avisar: correi, fugi!

Metemo-nos nas carroças e fugimos para Erexim. Santa teve de ir à força. No dia seguinte, Leib Rubin nos reuniu.

— Não sei o que vocês estão pensando em fazer — disse — mas eu já estou cheio dessas histórias todas: Barão Franck, Palestina, Sfat... Eu vou é para Porto Alegre. Querem ir comigo?

— E Shabtai Zvi? — perguntou Natan de Gaza com voz trêmula (era remorso o que ele sentia?).

— Ele que vá para o diabo, aquele louco! — berrou Leib Rubin. — Só trouxe desgraças!

— Não fale assim, pai! — gritou Santa. — Ele é o Messias.

— Que Messias, nada! Acaba com essa história, isso ainda vai provocar os anti-semitas. Não ouviste o que o padre disse? O Messias já veio, está bom?

Transformou a água em vinho e outras coisas. E nós vamos embora. O teu marido, se ainda está vivo, e se ficou bom da cabeça, que venha atrás. Eu tenho obrigação de cuidar de ti, e vou cuidar de ti, com marido ou sem marido!
Viajamos para Porto Alegre. Judeus bondosos nos hospedaram. E para nossa surpresa, Shabtai Zvi apareceu uns dias depois. Trouxeram-no os “Abas Largas”, que haviam prendido todo o bando de Chico Diabo.

Um dos soldados nos contou que haviam encontrado Shabtai Zvi sentado numa pedra, olhando para o corpo de Chico Diabo. Espalhados pelo chão — os bandidos, bêbados, roncando. Havia bois carneados por toda a parte. E vinho. “Nunca vi tanto vinho!” Tudo o que antes tinha água agora tinha vinho! Garrafas, cantis, baldes, bacias, barricas. As águas de um charco ali perto estavam vermelhas. Não sei se era sangue das reses ou vinho. Mas acho que era vinho.

Ajudado por um parente rico, Leib Rubin se estabeleceu com uma loja de fazendas. Depois passou para o ramo de imóveis e posteriormente abriu uma financeira, reunindo grande fortuna. Shabtai Zvi trabalhava numa de suas firmas, da qual eu também era empregado. Natan de Gaza envolveu-se em contrabando, teve de fugir e nunca mais foi visto.

Desde a morte de Santa, Shabtai Zvi e eu costumamos nos encontrar num bar para tomar vinho. E ali ficamos toda a noite. Ele fala pouco e eu também; ele serve o vinho e bebemos em silêncio. Perto da meia-noite ele fecha os olhos, estende as mãos sobre o copo e murmura palavras em hebraico (ou em aramaico, ou em ladino). O vinho se transforma em água. O dono do bar acha que é apenas um truque. Quanto a mim, tenho minhas dúvidas.
Moacyr Scliar, "Os cem melhores contos brasileiros do século"

A mal-amada

É em nossa variedade mestiça, vocálica, plástica e colorida do idioma nascido há cerca de oitocentos anos na Península Ibérica, filho caçula do latim, que estão mergulhados hoje mais de 80% dos lusoparlantes.

Pena que, no meio dessa multidão, não faltem os que falam mal da sua língua. Repare na preposição: falam mal da sua língua. Mesmo quando nem a falam tão mal assim.

Dizem que o português brasileiro é errado, que só os irmãos d’além-mar sabem tratar a gramática como ela merece. Ou então dizem que esse idioma enrolado e difícil nunca prestou mesmo, já era uma desgraça antes de Camões — ah, quem nos dera falar uma língua de Primeiro Mundo!

Há aqueles que, empenhados na causa nobre de estudar os falares do povo, desenvolvem um preconceito contra a língua-padrão e, por tabela, contra os séculos de beleza que a literatura nos legou. Terminam por proclamar — sem que
ninguém dê muita bola, é verdade — a independência linguística do “brasileiro”.

E existem os que se aproveitam da confusão generalizada para exercer os vis prazeres de corrigir o que nunca esteve errado — e tome bobagens como “risco de morte”, “um peso e duas medidas” etc.

Ainda nem falamos das saúvas clássicas: o analfabetismo funcional que assola a maioria da população, o pedantismo cafona do juridiquês, a barbaridade do corporativês, a importação servil de estrangeirismos gratuitos e a tendência —
aliás universal — ao chiclete viciante do clichê, da embromação, da entropia do sentido…

Nesse quadro, muita coisa anda em falta no Brasil, a começar por uma educação de qualidade minimamente aceitável. Mas talvez não seja piegas dizer que falta amor à língua também.

Os debates públicos sobre a língua andam chatos, parecendo diálogos de surdos. De um lado gritam os que defendem por puro reflexo a gramática tradicional (muitas vezes sem sequer dominá-la), convencidos de que o mundo vai acabar
da próxima vez que alguém escrever “Me chama” em vez de “Chama-me” — como se isso não fosse banal na literatura brasileira há quase cem anos.

Do outro lado, esgoelam-se aqueles que se baseiam nos estudos linguísticos modernos para abrir fogo contra qualquer fumaça de certo e errado, beirando a esculhambação de tratar o português bem transado, que procura atualizar a tradição dos bons autores em vez de dinamitá-la, como entulho normativista.


Sem caretice e sem vale-tudo, este livro entende os argumentos dos dois lados, mas reserva-se o direito de não morrer abraçado com nenhum deles. Aposta que é possível cultivar a variedade culta da língua e ao mesmo tempo compreender que regras são historicamente determinadas, que nenhuma delas caiu do céu, e que no fim das contas o idioma é sempre atualizado por quem o fala. A mesma aposta inclui o reconhecimento da grande beleza que existe nisso.

Sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independência que pudessem transformar (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeira, Viva a língua brasileira! dança na corda bamba de sombrinha.

Sim, feito a esperança de Aldir Blanc na canção “O bêbado e a equilibrista” — um dos poetas da língua brasileira que teremos como guia de viagem.

Ganho a vida com palavras, mas minha abordagem não é a de um linguista, gramático ou professor de português. Sou escritor e jornalista.

Este livro é fruto de duas experiências pessoais: meio século como falante e quinze anos como pesquisador e colunista (na imprensa tradicional e na internet) especializado em língua e linguagem, em nosso jeito de falar e escrever: o certo e
o errado, o bonito e o feio, o como e o porquê, de onde viemos e para onde vamos.

Se você acha nosso idioma dificílimo, ilógico, caidaço, ou acredita que conversar amorosamente sobre ele é perda de tempo — lamento, você está errado. Espero que este livro mude seu modo de pensar.

É em nossa variedade mestiça, vocálica, plástica e colorida do idioma nascido há cerca de oitocentos anos na Península Ibérica, filho caçula do latim, que estão mergulhados hoje mais de 80% dos lusoparlantes.

Pena que, no meio dessa multidão, não faltem os que falam mal da sua língua. Repare na preposição: falam mal da sua língua. Mesmo quando nem a falam tão mal assim. Dizem que o português brasileiro é errado, que só os irmãos d’além-mar sabem tratar a gramática como ela merece. Ou então dizem que esse idioma enrolado e difícil nunca prestou mesmo, já era uma desgraça antes de Camões
— ah, quem nos dera falar uma língua de Primeiro Mundo!

Há aqueles que, empenhados na causa nobre de estudar os falares do povo, desenvolvem um preconceito contra a língua-padrão e, por tabela, contra os séculos de beleza que a literatura nos legou. Terminam por proclamar — sem que
ninguém dê muita bola, é verdade — a independência linguística do “brasileiro”.

E existem os que se aproveitam da confusão generalizada para exercer os vis prazeres de corrigir o que nunca esteve errado — e tome bobagens como “risco de morte”, “um peso e duas medidas” etc. 

Ainda nem falamos das saúvas clássicas: o analfabetismo funcional que assola a maioria da população, o pedantismo cafona do juridiquês, a barbaridade do corporativês, a importação servil de estrangeirismos gratuitos e a tendência —
aliás universal — ao chiclete viciante do clichê,da embromação, da entropia do sentido…

Nesse quadro, muita coisa anda em falta no Brasil, a começar por uma educação de qualidade minimamente aceitável. Mas talvez não seja piegas dizer que falta amor à língua também.

Os debates públicos sobre a língua andam chatos, parecendo diálogos de surdos. De um lado gritam os que defendem por puro reflexo a gramática tradicional (muitas vezes sem sequer dominá-la), convencidos de que o mundo vai acabar
da próxima vez que alguém escrever “Me chama” em vez de “Chama-me” — como se isso não fosse banal na literatura brasileira há quase cem anos.

Do outro lado, esgoelam-se aqueles que se baseiam nos estudos linguísticos modernos para abrir fogo contra qualquer fumaça de certo e errado, beirando a esculhambação de tratar o português bem transado, que procura atualizar a tradição dos bons autores em vez de dinamitá-la, como entulho normativista.

Sem caretice e sem vale-tudo, este livro entende os argumentos dos dois lados, mas reserva-se o direito de não morrer abraçado com nenhum deles. Aposta que é possível cultivar a variedade culta da língua e ao mesmo tempo compreender que regras são historicamente determinadas, que nenhuma delas caiu do céu, e que no fim das contas o idioma é sempre atualizado por quem o fala. A mesma aposta inclui o reconhecimento da grande beleza que existe nisso.

Sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independência que pudessem transformar (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeira,Viva a língua brasileira! dança na corda  bamba de sombrinha.

Sim, feito a esperança de Aldir Blanc na canção “O bêbado e a equilibrista” — um dos poetas da língua brasileira que teremos como guia de viagem.

Ganho a vida com palavras, mas minha abordagem não é a de um linguista, gramático ou professor de português. Sou escritor e jornalista.

Este livro é fruto de duas experiências pessoais: meio século como falante e quinze anos como pesquisador e colunista (na imprensa tradicional e na internet) especializado em língua e linguagem, em nosso jeito de falar e escrever: o certo e
o errado, o bonito e o feio, o como e o porquê, de onde viemos e para onde vamos.

Se você acha nosso idioma dificílimo, ilógico, caidaço, ou acredita que conversar amorosamente sobre ele é perda de tempo — lamento, você está errado. Espero que este livro mude seu modo de pensar.

Mas se você se orgulha de ser um falante nativo da língua de Carlos, Clarice, Chico e Clementina, se compreende o valor de respirar dia e noite o sexto idioma do mundo em número de falantes e o terceiro nas redes sociais — bem, parece que nós falamos a mesma língua.

Digamos que, além disso, você se aborrece quando ouve algum bobo dizer que breakfasts são mais saborosos que cafés da manhã, pois sabe que o ultraconservadorismo é uma furada e que devemos dar boas-vindas a estrangeirismos e outras inovações, mas sem perder o senso de ridículo jamais.

Nesse caso, não resta dúvida: você acaba de encontrar sua turma.

Boa viagem!
Sérgio Rodrigues, "Viva a língua brasileira!"

Um livro

Um livro é assim como um filho,
que lançamos, indefeso, às feras.
Tentámos, com amor, dar-lhe brilho
e, às vezes, elegância de pantera.

Tivemos insónias e também dores,
faltámos a deveres e encontros,
sempre em favor daqueles fervores,
que se alimentam de desencontros.

Um livro constrói-se com emoção,
mas também com cálculo e razão.
Junte-se a isso, enorme esforço,

de que a alegria é um reforço.
É filho com que nos preocupamos
e de quem, por vezes, nos orgulhamos.

Eugénio Lisboa