sábado, setembro 16

O inferno é de gelo

Estava (estou) em plenos 81 anos, faceiro, indo para lá e para cá, fazendo shows, palestras, saracoteando e, às vezes, olhando com certa vaidade ou autossuficiência para pessoas mais novas do que eu mancando, com bengala ou muleta, sem coragem ou possibilidade de subir uma escada, ou presas à cama. Confesso, envergonhado, era certa onipotência. Pecado venial?

“Mas há na vida sempre um dia, dia do sonho se acabar, e este me veio e eu não via, aquele veleiro regressar.” Este é o trecho da canção História Triste de Praieira, de Stefania Macedo, de 1929, que minha mãe costumava cantar todos os dias na minha infância.

Sei que é um clássico do gênero. Dona Maria do Rosário me advertia: lembre-se, há na vida sempre um dia.

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Dito e feito, esse dia foi há umas quatro semanas. Ao subir uma escada, o degrau desapareceu. Meu corpo voou, entrei em pânico, sabia o perigo de uma queda. Vi o chão se aproximar. Uma queda é rapidíssima para quem olha, vagarosa para quem cai, uma eternidade. Vislumbrei cair de cabeça, sofrer um traumatismo craniano, ou quebrar o fêmur, passar por cirurgia, ficar meses na cama, enfaixado, engessado, perdendo todas as palestras que tenho pela frente, incluindo a de amanhã, às 16 horas na Flim, no Parque Vicentina Aranha, em São José dos Campos. Imaginei cair de cara, bater o nariz, quebrar a mandíbula, fazer plástica (talvez melhore esta cara brava), colocar pinos nos pés. Fantasiei costelas quebrando, perfurando o pulmão, eu sem respirar, necessitando de oxigênio pelo resto da vida.

Enfim, cheguei ao chão, bati o ombro esquerdo. Vocês não têm ideia da sensação de humilhação que é cair, todos nos olhando, alguns rindo, outros dizendo “coisa de velho”, inimigos querendo que morra. Querer levantar e não conseguir. Ser amparado por mãos generosas. Trazem um copo de água com açúcar, querem levar ao pronto-atendimento. Puxam uma cadeira. Bem, a queda foi menos traumática como resultado. Uns tendões se desligaram no ombro esquerdo. Mas descobri que a queda foi ocasionada por uma artrose no joelho direito. Horror! Artrose? Pancada no ego. Vexame, fraqueza, acanhamento. Quanta besteira, diria vovó Branca, mãe de meu pai.

Nesse meio tempo, tive de ir a Ribeirão Preto. Amparado por uma bengala, que acreditei me dar certa elegância, comecei a subir a escada de embarque em Congonhas. São aqueles voos que não saem do finger, vamos de ônibus até a pista. Subi degrau a degrau, cauteloso. Então, ouvi uma voz: “Ô, meu senhor! Se é para andar devagar, por que não fica por último, para não atrapalhar ninguém”? Um sujeito atrás de mim foi solidário. Parou, não deixou ninguém passar e me disse: “Suba tranquilo. As pessoas estão cada vez estúpidas”.

Escrevi a um amigo da adolescência, Sergio Fenerich, contando essas tolas atribulações. Ele foi rápido e direto: “Por que será que não gostamos de cair? (Ademais da queda propriamente dita e dos danos físicos que ela nos pode causar, é claro?) Não será porque cair é perder a nossa condição de animais verticais, e adquirir, em troca, um estado de horizontalidade, que, a bem dizer, é, primeiro, uma diminuição da nossa própria condição humana, de seres eretos, criados à imagem e semelhança de Deus, e, segundo, uma metáfora da mesma morte? Ao cair, segue-se, por mais ou menos tempo, o jazer (ou ficar deitado), palavra que nos evoca, queiramo-lo ou não, a ideia de ócio, inatividade, suspensão das atividades normais, e, mais dramaticamente, de cessação da própria vida material e baixa ao jazigo, do corpo defunto. Parodiando os versos célebres, cair, como partir, ou como dormir, não seria, igualmente, mourir un peu?”.

Passados alguns dias, no meu estúdio, a cadeira deslizou puxada pela mão da bruxa, caí, torci o pé, inchou, doeu terrivelmente. Pronto, calamidade, minha vida acabada, fazer o quê? Sou catastrófico, penso no pior. Então, recebi a nova revista da Gol com uma capa magnífica. Para mim a melhor de toda a história da publicação, pelo significado. A modelo Paula Antonini, que teve a perna esquerda amputada em um acidente, colocou uma prótese e é hoje, modelo internacional. E em um jornal li sobre a morte de Adriano Pereira, que teve o pé direito amputado, fraturou uma vértebra em desastre e chegou a campeão Panamericano de natação, teve dois bronzes em Atlanta.

E eu, cheio de autopiedade com dois tombos chatos, mas de certo modo insignificantes. Tive vergonha. Estou bem, a cabeça a toda, terminei novo romance, consigo me locomover ainda que lentamente. (Mula manca, diriam de mim na infância) Para que pressa? O que mais quero? Desviei o olhar do meu umbigo. Então me ocorreu uma coisa o condicionamento em que vivemos. Católico, cresci em um mundo de culpas e castigos. Culpas por tudo, penitências, pecados, punições, confissões, absolvições. Achava que tinha me liberado com o tempo. Mas – sei lá se pela idade, por ficarmos mais vulneráveis – ou pelo medo de que as coisas não sejam como a gente quer ou imagina, diante desses contínuos ir ao chão, lembrei da culpa. Estaria pagando malfeitos? Sendo punido pela vaidade? Estaria me achando? Alguém (quem?) então me apontou o dedo, dizendo: “Menos, Ignácio, menos. Você é frágil como todos”. Uma coisa descobri. Ao enfiar o pé em um balde de gelo, várias vezes ao dia, soube que o inferno não é de chamas, é de gelo. Eta dor!

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