quarta-feira, junho 13

O livro da solidão

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: “Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?”

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: “Uma história de Napoleão.” 

Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo... Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e Uma Noites. 



 Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado), o que levava comigo era um dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O dicionário tem dentro de si o universo completo. Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência às noções —, vai habitar o dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para a poesia, umas para a história, outras para o teatro. E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Eu levaria o dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica. Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. Sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Cecília Meireles

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