quarta-feira, fevereiro 6

'Em Cuba, tenho muitos leitores, mas poucos livros para esses leitores'

Cuba povoa a literatura de Leonardo Padura. Mesmo que as histórias transitem pela Espanha da guerra civil ou pela Rússia dos soviéticos, a perspectiva cubana segue firme como fio condutor da narrativa. Em A transparência do tempo (Boitempo), novo romance do escritor, isso não é diferente. Dividida em diferentes tempos históricos, a obra acompanha o detetive Mário Conde em mais um caso — o roubo da estátua de uma Virgem negra. Ao longo do livro, os problemas sociais de Cuba não passam despercebidos aos olhos do leitor, algo que, vale dizer, se tornou característico do trabalho de Padura. Ainda que descortinar as contradições do regime não seja exatamente fácil, ele diz não se limitar. “Creio que isso é evidente para qualquer leitor de meus livros, ensaios, roteiros de cinema e reportagens. Claro, arco com as consequências do que digo, mas esse é o preço da liberdade.”

Em A transparência do tempo, o senhor leva o leitor a uma viagem por diferentes momentos históricos, como a guerra civil espanhola e a Idade Média. Que tipo de pesquisa fez para retratar esses períodos?

Faço dois tipos de pesquisa: uma pesquisa de campo e outra bibliográfica. Certamente, a pesquisa feita em livros é a mais importante, pois me permite conhecer mais profundamente esses momentos históricos. No entanto, sempre que possível, gosto de conhecer os lugares em que essas histórias se passaram, os espaços físicos em que os personagens viveram. Assim é possível fazer um relato mais verossímil e impactante, já que essa é a principal exigência do romance, diferentemente da história.

Como ocorre em outros livros escritos pelo senhor, o detetive Mario Conde é protagonista de A transparência do tempo. O que torna o personagem tão central em sua obra?
Já disse muitas vezes que Mario Conde é o melhor veículo que tenho para me cercar da realidade cubana contemporânea, mas ele também me aproxima de elementos da condição humana que são eternos, mas se manifestam de formas peculiares em contextos peculiares. Conde é uma pessoa que busca a verdade, e essa busca, até que chegue ao fim, deve esbarrar em muitas mentiras, e, sobretudo, na realidade e nas atitudes que ele interioriza, vive e expressa a partir da minha perspectiva do cubano atual. Ele não é meu alterego, e sim meu porta-voz.

Livros não são importados no país e seriam muito caros para os leitores cubanos. Então, são feitos por volta de 3, 4 mil exemplares para
circular na ilha

É possível notar a inquietude de Conde com a proximidade da velhice. O modo como as pessoas envelhecem é um assunto que lhe desperta interesse?

Bem, acho que esse assunto que desperta interesse em todo mundo, principalmente quando se chega a uma certa idade e o joelho dói quando levantamos da cama, ou levamos mais tempo para nos recuperarmos de uma noite regada a vinho. A velhice é um estado lamentável, porque sempre a comparamos com a juventude e seus vigores. De alguma forma, nos dá um alívio pensar que somos mais sábios, mas nem sempre isso é verdade. E, no caso do escritor, a velhice pode gerar a perda da lucidez, e um excesso de confiança na experiência e no “ofício” que atrapalha o funcionamento daquilo que Hemingway chamava de “detector de merda”, que deve estar sempre ligado. Além disso, escrever um romance é um desafio que leva dois ou três anos, e, quando se tem mais de 60 anos, demora cada vez mais tempo.

A estrutura narrativa de seu último lançamento é bastante elaborada. Poderia contar como foi o processo de construção dela?

A questão é que estruturas lineares não me satisfazem mais. Por essa razão, em meus últimos livros, sobretudo a partir de La novela de mi vida (O romance da minha vida, em tradução livre), tenho buscado estruturas mais complexas. Neste livro, alterno o presente, que vai em sentido linear, com a trama histórica, que vai em sentido inverso. Dessa forma, crio não só uma expectativa no leitor, mas também vou avançando em direção à origem de tudo o que conto. Ao mesmo tempo, uso a história para demonstrar que vivenciamos desafios similares, com respostas muito parecidas.

Lançado em 2009, O homem que amava os cachorros (Boitempo) é um romance cuja narrativa também apresenta certa complexidade, principalmente em torno dos três personagens centrais. Quais foram os cuidados que o senhor teve ao criar essa trama?

Ao escrever esse livro, esbarrei em um problema muito grave. Antes de começar a leitura, todo mundo sabe o que acontece no clímax: Ramón Mercader assassina Troski no México, em 1940. Era preciso, então, criar recursos narrativos, de composição, de ritmo que permitissem estimular o interesse do leitor. E as linhas dramáticas que se cruzam, se complementam e se separam serviram para atingir esse objetivo. Boa parte dos três anos que levei para escrever o livro foi gasta apenas na montagem dessas três linhas narrativas..

O senhor se notabilizou por escrever histórias ligadas à literatura policial. O que o atrai no gênero?

Gosto da capacidade que o romance noir tem de contar qualquer história, de passar por cima das convenções e ser uma literatura de alta elaboração estética. Gosto do romance policial por sua vocação de ser uma literatura social e por contar uma história com princípio e fim, como toda boa ficção deve fazer. Atrai-me também o modo como o romance policial fala de uma realidade a partir de seus recantos mais obscuros, que em geral são os lugares mais reveladores. E, como leitor, gosto de ler bons romances policiais.

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