domingo, fevereiro 3

O livro novo

Susa Monteiro
E, finalmente, ao cabo de quase dois meses sem escrever, sinto o próximo livro a aproximar-se devagarinho de mim. Hoje, sem que eu esperasse, a meio de uma conversa acerca de Tolstoi e quando o meu sócio de trabalho me lembrou uma passagem de Ivan Ilitch, que diz “a história passada da vida de Ivan Ilitch fora a mais simples e vulgar e, por isso, a mais horrível”, vibrei numa espécie de explosão interior e, de repente, todo o trabalho ali estava, numa evidência absoluta. Tinha passado parte de novembro às voltas com um projecto que, tal como estava, não me servia e continuava a não me servir apesar de todas as alterações que lhe introduzi. Acabei por desistir dele e tornar-me mais pobre do que os mortos, sem soluções alternativas, sem caminho nenhum para parte alguma, julguei que a torneira se havia fechado para sempre

(julgo sempre que a torneira se fechou para sempre)

os dias começaram a arrastar-se como lesmas, passava-os sentado à mesa, de caneta na mão, a olhar o papel vazio numa paciência imóvel que me doía, a perder esperança e hoje, de súbito, a frase que citei acima escancarou a porta e eis o livro à minha frente, à espera, dava ideia que a olhar-me, quer dizer não bem o livro, apenas o material inteiro do livro amontoado em desordem como um modelo para armar, com as suas inúmeras peças apesar de dispersas, prontas a encaixarem umas nas outras e eu com medo de tocar-lhes e cheio de vontade de principiar a utilizá-las, ainda incrédulo com esse favor dos deuses. Agora tenho que dar-lhe uma estrutura antes de principiar a construir, há imensos ocos aqui e ali, inúmeros problemas técnicos ainda sem solução, montes de direções enganosas. Mas tenho-o e isso provoca-me um alívio difícil de exprimir. Eu pensava acabar o meu trabalho com dois livros, o primeiro dos quais agora à minha frente, depois espero que o outro e pronto. Mas este já está. Quer dizer espero que já esteja. É apenas necessário estruturar o material, ajeitar aquilo tudo, principiar, cheio de medo, a compô-lo. Eu funciono por aperfeiçoamentos sucessivos, corrigindo, corrigindo. É um livro difícil de fazer mas que livro até hoje não foi difícil de fazer? E depois gosto de desafios. O pior, o nada que existia em mim, já passou. E aí vou eu, tem-te não caias, páginas fora. Que trabalho tão estranho escrever. Chama-se “Pássaros Quase Mortais Da Alma”, vamos ver o que consigo com ele. Mas hei-de ganhar nem que deixe lá os ossinhos todos. Possuo uma dúzia vozes, faltam-me outras que é necessário colocar nos buracos respectivos. Estes “Pássaros” hão-de voar porque eu quero. Um livro não é uma prenda que cai do céu, é uma coisa conquistada migalha a migalha, o resultado, pelo menos para mim, de uma paciência infinita, um

– Anda lá rapaz

sem termo à vista. E o rapaz lá vai, cheio de cuidado com os sítios onde pôr os pés, dado que tudo escorrega à minha volta. Ao mesmo tempo gosto destes desafios, desta luta. Lembra-me a guerra e eu não gosto de perder, não me resigno a perder. Daqui a não sei quanto tempo ficará pronto, como os restantes. Mas deixa-se a pele

(e um bom bocado de carne)


nisto. De resto por que motivo me lamento se não trocava a minha vida por nada? Acho que não escolhi este caminho, limitei-me a aceitá-lo, respondi

– De acordo

a uma qualquer voz desconhecida que me propôs este pacto, uma espécie de encontro entre duas solidões. Olho para a janela, é noite agora. Tudo preto. Casas ao longe. E eu, sei lá porquê, a pensar nos meus pais. Gostava que me houvessem dado colo, nunca me deram. Sou tão pequeno às vezes, sabiam? É verdade: sou tão pequeno às vezes. Onde pára o meu aviãozito de madeira? Apetece-me fazer

– Vvvvvvvv

com ele até sair pela janela a caminho de mim.

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