quinta-feira, agosto 20

Livros não deveriam ser taxados mesmo que não houvesse leitores no Brasil

Num país como o Brasil, que ao longo de sua história manteve analfabeta a maior parte de sua população, é imoral defender qualquer medida que restrinja o acesso a livros.

Qualquer medida mesmo. Seja por meio da censura, outra constante na história brasileira, a que figuras como Jair Bolsonaro e Marcelo Crivella demonstram no mínimo simpatia; seja por meio de obstáculos econômicos, como a proposta de Paulo Guedes para a retirada da isenção de tributos sobre o livro, que o encareceria. É fácil, inclusive, ver que um tipo de ataque está ligado ao outro: o que não se consegue pela força, tenta-se pelo bolso.

Mas suponhamos, por um instante, que o ataque do Ministério da Economia tivesse uma razão técnica de ser. Que ele não se encaixasse numa série de ofensivas contra os setores da Educação e da Cultura, nos quais se reúnem opositores de primeira hora do governo (opositores muitas vezes por uma questão de sobrevivência, já que foram escolhidos como inimigos antes ainda de Bolsonaro ser eleito). Imaginemos o improvável cenário em que a proposta de taxar os livros se baseou apenas na crença sincera nos benefícios dessa medida.

O principal argumento a sustentar essa visão supostamente técnica é o de que os livros seriam um produto elitizado. Consumido apenas pelo exíguo topo da pirâmide social, gente que continuaria a comprá-lo se houvesse imposto, gente que poderia pagar. Basicamente, um produto de luxo, como vinhos importados.


Um erro evidente. Primeiro, porque esse ponto de vista revela ignorância sobre a situação concreta dos livros, sobre o mercado editorial e as opções disponíveis aos leitores. É verdade que há obras de luxo, com acabamento gráfico sofisticado e preços em centenas de reais – um produto de fato destinado a uma parcela mínima da população brasileira, com frequência um público de especialistas, mais que de ostentadores. 

Mas há também edições de bolso, acessíveis, baratas, disponíveis em bancas, em rodoviárias. Livros que saem mais em conta do que muitas revistas, durando mais tempo e oferecendo maior densidade de informação. O imposto os sabotaria.

Segundo, porque o argumento do livro como artigo de luxo revela uma ignorância ainda maior sobre o lugar social da leitura, sua importância e seu impacto. Há séculos, literalmente, que se defende a leitura como crucial para a autonomia dos cidadãos, seja ao desenvolver seu pensamento crítico, seja ao muni-los de informações que melhorem e transformem a sociedade, seja simplesmente ao lhes dar um pouco de prazer para atravessar os dias atribulados (três possibilidades que se mostram essenciais no Brasil de hoje).

Pensando nisso, qualquer país sério oferece aos cidadãos uma rede de bibliotecas públicas. Afinal, em sociedades democráticas esses benefícios do livro devem ser levados à maior quantidade possível de pessoas. Não há “artigo de luxo” que tenha recebido tantos esforços, em tantas culturas diferentes, ao longo de tantas décadas, para ficar disponível ao público. Por isso não faz sentido a comparação. Quantos países têm enotecas nacionais de vinhos importados, espalhadas por grandes e pequenas cidades, custeadas pelo Estado?

Eu iria além. Livros não deveriam ser taxados mesmo que não houvesse público leitor no Brasil, tamanha sua importância. As pessoas poderiam se informar exclusivamente pela internet ou TV e poderiam se divertir apenas por telas, como serviços de streaming e redes sociais. Ainda assim, livros deveriam ser isentos de impostos.

Afinal, eles estão na base dessa circulação de conhecimento e entretenimento. Impactam direta ou indiretamente até mesmo quem não lê nunca. Séries e filmes muitas vezes são adaptados de livros de ficção ou de não ficção. Documentários e programas educativos entrevistam especialistas, reconhecidos por terem escrito livros sobre os temas. Um artigo numa enciclopédia online é tanto mais confiável quanto mais livros constarem em seu conjunto de referências.

Até quem não lê nem demonstra nenhum interesse ou carinho por livros, até quem os despreza e os ataca, até mesmo Jair Bolsonaro tentou pegar carona no prestígio deles, exibindo-os na sua primeira live depois de eleito. Além de fonte de prazer e de conhecimento, livros também são signo de poder – um poder que o governo Bolsonaro, por meio da proposta de Paulo Guedes, quer roubar à maioria da população brasileira, restringindo-o ainda mais a uma elite econômica.

Se realmente tivesse o interesse público em mente, o governo não dificultaria o acesso aos livros, mas o ampliaria. Em vez de revogar isenções de impostos, equiparia as bibliotecas públicas, investiria na formação de leitores e no combate ao analfabetismo, levaria a sério a Educação e a Cultura, propiciaria condições para que houvesse diversidade, pluralidade e grande circulação de publicações. Não asfixiaria o mercado editorial. Sobretudo, não daria continuidade à nefasta tradição brasileira de criar obstáculos a leitores em potencial, já nascidos ou ainda por vir.

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