quinta-feira, agosto 13

A sombra do Romariz

Dizer que não trabalho mais à noite, no jornal, não é bem verdade. Licenciei-me por alguns meses, para lá não ir à noite. Quando há desses turumbambas políticos, na cidade, fujo do trabalho noturno. E faço semelhante coisa principalmente quando vejo certos nomes metidos neles.

Quem expunha isto era o tipografo Brandão a seu colega Barbalho que tinha observado àquele a sua ausência das oficinas do Diário Carioca, naqueles últimos dias.

Brandão continuou:

– Quando vejo tais nomes fico cheio de pavor, meu ânimo se estiola, não tenho coragem para nada, toda a minha personalidade é atingida de seca. Há dias, a mulher me pediu que fosse reconhecer a firma de um papel necessário a ela, a fim de receber uma pensão. Fui para a oficina, de manhã, hesitei, tive medo, afinal dei uma gorjeta a um aprendiz, para ir ao tabelião.

– Então, sempre estás trabalhando de dia?

– Que fazer? Preciso de algum dinheiro para as despesas inadiáveis; mas, à noite, nunca.

– Porque isto?

– É a sombra do Romariz.

– Quem é ou quem foi esse Romariz?

– Eu te conto. Em 1890, acabava-se de proclamar a República. Isto há trinta anos. Eu tinha vinte e poucos. De dia, trabalhava na Casa Mont’Alverne; e, a noite, fazia uns bicos, na Tribuna Liberal. Um jornal apaixonadamente monarquista que atacava o governo provisório sem peso, nem medida. A bem dizer, não o lia ou mal o lia, porque, quando deixava a oficina da Tribuna, para pegar o último bonde de Vila Isabel, onde morava, ele ainda não estava impresso.


A campanha da Tribuna era superiormente feita e levada com rijeza, no dizer de todos. Começou-se a falar que iam empastelar a folha. O governo desmentiu, assinalando que era seu ponto de honra manter a liberdade de pensamento e de imprensa.

Continuei a trabalhar com mais coragem e sossego. Vi senão quando, aí pelas oito ou nove horas, entrar pela oficina adentro o aprendiz assustado e avisando cheio de terror: “Fujam! Fujam! Lá vêm eles!” Perguntado o que havia, contou que descia pela Rua do Ouvidor um magote de gente, fardados e outros à paisana, a gritar: “Morram os sebastianistas! Morra a Tribuna Liberal! Viva o Marechal Deodoro!” etc., etc.

À vista da narração do pequeno, todos trataram de fugir. Em nenhuma seção do jornal ficou viva alma. Redatores, revisores, compositores, impressores – todos fugiram. Só ficou no edifício o Romariz, um pobre revisor que dormia profundamente, descansando a cabeça sobre os braços cruzados e estes sobre a mesa de trabalho.

Por mais que o sacudissem e o chamassem, não foi possível despertá-lo. O tempo urgia; e o infeliz revisor lá ficou abandonado. Ele vivia tresnoitado; trabalhava dia e noite para manter a mãe e os irmãos. Tinha um pequeno emprego na estrada de ferro, que mal lhe dava para pagar a casa em subúrbio longínquo; lançara mão do ofício de revisor de provas, para acrescentar sua renda. Saía tarde do jornal; havia poucos trucks naquele tempo; e, muitas vezes, só ia em casa para mudar o colarinho, comer um pouco e voltar à cidade, a fim de assinar o ponto na Central.

Como te disse, foi ele o único que ficou, devido a seu profundo sono, perfeitamente explicável como tu já viste. Os assaltantes foram entrando, quebrando balcões, máquinas, derramando as caixas de tipos no chão, enquanto outros subiam ao primeiro andar cheios de raiva que, neles, nada explicava. Topando com o Romariz dormindo, nem se deram ao trabalho de despertá-lo. Foram-no desancando de cacete e de coices de armas na cabeça e ele mesmo sem saber porque. Vi-lhe o cadáver, estava hediondo; vi-lhe a família, que ficava na maior miséria: vi…

– E daí?

– Daí é que quando há desses turumbambas políticos, vejo a sombra do Romariz que me diz: “Não vás trabalhar, à noite”.

– És espírita?

– Não; mas há muito mistério nesta nossa triste vida terrena.
Lima Barreto, Careta, 14//01/1922

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