quarta-feira, agosto 5

Uma crônica de manhã

Adquiri o hábito de acordar cedo. Antes que perguntem, não foi consequência da quarentena. Era já desejo de ano novo, mas que parecia mais factível do que, por exemplo, começar a me exercitar. Minha preguiça é uma negociadora dura. Quando se junta com sua sócia, a postergação, então… Sinto-me mais produtivo quando desperto logo após o início do dia. Permitam-me retificar isso: é fato. Pratos e talheres se ordenam altivos no escorredor, a máquina de lavar canta repetitiva e as roupas do dia anterior tomam sol. Também é meu horário mais criativo e o momento em que escrevo. Sei que meu editor nesta página preferiria que mudasse o dia de meu ritual para o anterior ao prazo de publicação no site. Porém, ainda é um trabalho em progresso, que prometo que ocorrerá, assim como largar os malditos cigarros.

Onde moro gorjeiam maritacas, que não gorjeiam no meu futuro lar. Sentirei falta delas. Seus gritos agudos que quebram o silêncio sempre foram selos de qualidade de uma existência matutina. Elas dominam o palco até o horário do almoço. Logo após a concorrência sonora humana é desigual. Talvez cantem tão alto por conta dos fortes raios de sol, que não têm acesso a onde me mudarei. Penso nas pequenas coisas que irão quando fechar minhas trouxas. O que me surge é uma melancolia gostosa. A nova casa não é melhor que a atual, mas tem uma vantagem: é nova. Novo implica possibilidades, a chance de uma virada sobre os obstáculos dos últimos anos. Ter minha vida de volta, como os primeiros feixes de luz anunciam que preciso mudar a data no calendário.

Embora seja disperso quase por 24 horas, as sensações diferenciam a cada etapa. Pelas manhãs, há a torpeza. Meu corpo, automático, cuida das tarefas simples, porém essenciais para os desafios das próximas. Ainda grogue, busco mentalmente a agenda do dia e organizo a efetivação dessas. É a mesma coisa todo dia. O que me permite inovar durante a tarde. Sim, há a tabela de compromissos, porém existe a abertura de como realizá-las. Enquanto a louça insiste em se banhar com detergente e esponja e recusa outra forma. As manhãs são irredutíveis.

Como mencionei assim, preguiça e postergação me sugam. Como vampiros, o bronzeado da manhã costuma inibi-las. As pausas entre os deveres a cumprir são menores. O foco, imprescindível na escrita, se torna forte. Respondo às mensagens. Quando folgo das letras, pego uma reunião do grupo que frequento. Na minha vez de falar, expurgo as preocupações que migraram da noite anterior. Fico mais leve, e o resto do dia segue um ritmo de fechamentos agradável. Antes da pandemia, adorava ir à padaria, comprar os pães e sentar para tomar um café no local. Hábito que retomarei quando a doença terminar sua turnê mundial, prometo.

Talvez o aspecto mais sedutor das manhãs é a janela de oportunidades que oferece. À medida que todos seguem para seus compromissos, sigo no fluxo. Olho para o relógio, que pisca cúmplice. “Olha só quantas horas você ainda tem!” Posso fazer bastante. Isto me anima, pois detesto ser inútil. Sentimento este inevitável quando acordo após meio-dia. Aproveito o dia em tudo que ele me pode oferecer. São quase 15 horas. Muita coisa acontece durante este tempo. Quem sabe até mudança. E mudar é evoluir. É se transformar algo mais vigoroso. Acho que são as vitaminas solares, antes dos efeitos do buraco na camada tomarem conta. Iniciar o dia é como iniciar uma nova vida.
Daniel Russell Ribas

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