segunda-feira, novembro 30

Livreiros e livrarias

Dê Alemeida
Antes da livraria, havia o livreiro. E já na época do Império. Consta que, em 1775, o cidadão Antônio Máximo de Brito pediu licença à mesa censória de Lisboa para importar cerca de 20 títulos, em português e francês. É o primeiro documento de que se tem notícia, no Brasil, sobre compra de livros com o fito de revenda.

Descobri o episódio ao fuçar a História das livrarias cariocas. No estudo, Ubiratan Machado relata as iniciativas individuais desses miúdos e desbravadores livreiros, a abertura das primeiras lojas no Rio de Janeiro, os casos de sucesso que atravessaram décadas, o aparecimento das grandes redes.

Para além de simples estabelecimentos de comércio, as livrarias da cidade se consolidaram como pontos de encontro. Espaços onde escritores, dramaturgos, artistas plásticos podiam conversar sobre estética, filosofia e política, além de praticar um de seus exercícios prediletos: a maledicência sobre os próprios pares.



No princípio do Século 19, o point era a Mongie, na Rua do Ouvidor. Por lá passaram autores como o romancista Joaquim Manuel de Macedo e os poetas Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães. Um pouco mais tarde, mas ainda dentro do século, o posto seria assumido pela Garnier, que também ficava na Ouvidor – como, aliás, a maioria das livrarias da cidade naquele tempo.

O francês Baptiste Louis Garnier trabalhava preferencialmente com obras editadas em seu país. Era conhecido por cobrar caro pelos livros, o que levou certo dia um jornalista a indagar por que não baixava os preços, compensando o lucro menor na escala maior de venda. “A regra é o aumento do consumo na razão da barateza do mercado”, argumentou o interlocutor. “Isso é possível em princípio”, admitiu Garnier, para então completar: “Só que os fatos aqui são rebeldes”.

Garnier era concorrente de Francisco de Paula Brito, que mantinha um misto de livraria, papelaria, tipografia e editora na Praça da Constituição (hoje, Praça Tiradentes). Sua firma era frequentada por gente como Machado de Assis, Manuel de Araújo Porto-Alegre e Casimiro de Abreu. Paula Brito, vale lembrar, foi o primeiro editor de Machado.

A turma costuma se sentar nos bancos de madeira estrategicamente instalados na calçada da loja para papear sem compromisso e observar a vida do Centro da cidade. Aos sábados, realizavam no local os encontros da Sociedade Petalógica, confraria de conversas sobre os mais variados assuntos, da beleza apolínea de um soneto à pirueta da dançarina da moda.

Livrarias como a José Olympio e a Freitas Bastos, onde Di Cavalcanti e o poeta Ronald de Carvalho chegaram às vias de fato, mantiveram essa tradição. Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Aníbal Machado e José Lins do Rêgo, por exemplo, eram figurinhas fáceis na José Olympio, cuja loja se localizava – adivinhe só ­– na Rua do Ouvidor. Graciliano Ramos, então morando numa pensão na Rua do Catete, passava o endereço da livraria a quem quisesse lhe enviar cartas. Era mais fácil encontrá-lo por lá do que em casa.

Tendo conhecido a literatura por meio do Círculo do Livro, clube de comércio com entrega a domicílio, só distingui as livrarias de coração quando já adulto. Primeiro, foi a Timbre, na Gávea. O corpulento Aluízio Leite, sócio e livreiro da loja, adorava indicar novas obras aos clientes habituais, e minha relativa ignorância transformava praticamente tudo em novidade. Sempre sentado à mesa que ficava logo após a porta de vidro, ele repelia obras de auto-ajuda (até as vendia, mas só com pagamento em dinheiro) e não hesitava em qualificar de ruim um livro, caso assim o julgasse. Aluízio tinha um humor cáustico. Quando certa vez uma dona lhe perguntou onde poderia encontrar livraria especializada em bonsais, respondeu de pronto: “Em Tóquio, minha senhora”.

Passei boas horas da minha vida na Timbre, depois revezando com a vizinha Bookmakers, que era dotada de uma especial vantagem: vendia, além de livros, café, vinho e cerveja. Quando comecei a trabalhar no Centro, a Leonardo da Vinci e a Galáxia se tornaram as paragens preferenciais. Dariam lugar, em alguns anos, à Livraria da Travessa original, na Travessa do Ouvidor, e à Folha Seca.

Comandada pelo querido Rodrigo Ferrari, a Folha Seca talvez seja hoje a livraria carioca que melhor se filia à tradição da Mongie, da Garnier, da Freitas Bastos, da José Olympio. Além da feliz coincidência de se situar na Rua do Ouvidor, a empresa tem no Rodrigo uma espécie de Paula Brito contemporâneo. Mais que livreiro e editor, ele é o imã que chama, à pequenina loja de número 37, historiadores, escritores, músicos, caricaturistas e toda sorte de malucos fundamentais.

E livrarias como a Folha Seca não são apenas lugares onde se vendem livros. São, como diria Borges, todo o universo. O labirinto em que a gente se perde só para experimentar, novamente, o assombro de se encontrar.

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