terça-feira, novembro 3

'O moço tá passando, o moço tá comprando'

Você já deve ter ouvido isso centenas de vezes, “O moço tá passando, o moço tá comprando”, numa voz ampliada num sistema de som lamentável. Aqui em casa todo dia entra pela janela esse clamor mal microfonado e um tanto desesperado, pelo menos é o que eu ouço, de que o moço tá levando o que não faz mais sentido, “a geladeira velha, o triturador de esperanças, o fogão de melancolias, a ilusão à toa e o beijo de liquidificador que não trepida mais o céu da boca de ninguém”.

O “moço tá passando” é uma voz gravada, sem rosto, e viaja como uma assombração sonora pela cidade na cabine de uma kombi aos pedaços, às vezes um caminhão com a carroceria já apinhada de bugigangas compradas no bairro anterior. É uma profusão de cacarecos amontoados, um almoxarifado de fracassos, e daqui do alto da minha janela eu consigo identificar a máquina de moer carne, a enceradeira de amor encerrado, o abraço que perdeu a oportunidade e uma procissão de bibelôs, dezenas de anjos já sem sangue na veia e também na decoração.

Sara Sánchez 

Dizem que entre um anúncio e outro – “compro a bacia das almas, o espremedor de traumas, a chaleira dos rancores” – o alto-falante da geringonça toca o gospel “Uma nova história/ Deus tem pra mim”, de um certo Fernandinho. Com sinceridade, na minha rua nunca ouvi a canção. Sempre que o moço tá passando aqui – “tá comprando pratos que perderam o apetite, fogões de sonhos esquecidos, aquecedores sem a chama azul da felicidade” - eu ouço em algum canto da memória “A festa dos Santos Reis”, do Tim Maia. É aquela em que os santos chegam tocando sanfona, violão, e vão levando o que podem – “se deixar com eles/eles levam até os bodes/os bodes da gente/os bodes mé”. 

Deus me livre de associar a delicadeza dos santos católicos, que prometem levar para longe os carmas mal resolvidos, com a estridência chata, os decibéis ilegais, de um pregão de ferro velho. Mas os tempos são outros. O moço tá passando – e os pinguins de louça estão cansados desses mares aquecidos de tensão. O moço tá comprando – e o guarda-roupa nunca mais serviu de esconderijo a qualquer amante.

O que fazer com a grande dor das coisas que passaram?

Indiferente ao tamanho dessas dores, o moço da kombi não pergunta nada e com sua gritaria acorda a cidade para informar que está em busca do que sobrou das glórias do sacrossanto lar. Nem aí para o inconveniente da cena, ele passeia seu féretro de quinquilharias aos olhos da vizinhança - e lá se vão os bisotados do espelho que, faz tempo, não se davam mais ao desfrute dos corpos ensandecidos no quarto do 402.

Quando todo mundo era criança um amolador de facas levava terror às famílias do subúrbio, porque a presença dele na rua era sinal de que alguém morreria. O moço da kombi tá passando para confirmar que desenlaces são inevitáveis. A panela cansada de protestar, a gaveta com a carta anônima, o jacaré embaixo da cama, a vitrola enferrujada pelas lágrimas do bolero, o punhal enterrado no peito, a luminária que perdeu a luz própria, a cama que deixou de ranger tesão, o esqueleto atrás da porta e o ferro de engomar que não passa mais a vida a limpo.

No Dia de Finados, o moço das coisas mortas é o meu personagem. Que pelo menos hoje ele passe em silêncio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário