segunda-feira, novembro 23

O lado errado

Acha que escreveu um romance feminista?, perguntou-me a Martine, a jornalista francesa, já a entrevista ia a meio. Olhei pela janela, via as costas do Panteão, na véspera fotografara a sua imponente fachada com a frase inscrita, “Aux grands hommes, la Patrie reconnaissante”. Tentei controlar as garras que me esgravatavam a garganta, esperando que o anti-histamínico que havia tomado há pouco as amansasse. Mal descera à sala de estar do hotel, ainda a Martine preparava o gravador, senti a aflição que tão bem conheço, pigarreei, de nada serviria, o meu corpo detetara alguma coisa que o pusera em alerta, dali a instantes teria um ataque de tosse, os olhos lacrimejantes, o nariz a escorrer. Um dos primeiros alergologistas que consultei explicou-me que as alergias resultam de uma hiper-reação do sistema imunitário, o meu corpo engana-se, inventa perigos em coisas inofensivas como pólen, pó, pelos de gato ou de cão, perfumes, laca de cabelo, o meu corpo demasiado receoso, demasiado prudente, talvez demasiado ávido de inimigos, numa defesa exagerada contra quase tudo. A Martine continuava à espera da minha opinião sobre o feminismo no meu romance, respirei fundo, pedi desculpa, Preciso de ir um bocadinho lá fora.

Dois homens que conversavam junto à entrada do hotel, mantendo entre eles a distância de segurança de metro e meio, olharam-me amedrontados, Oh mon dieu, comme elle tousse. O de sobretudo azul afastou-se e o outro seguiu-o. Escangalhada no meio do passeio, tentei recompor-me, inspirei fundo pelo nariz, expirei pela boca, repeti, o ar fresco foi sossegando os canais que levavam para dentro de mim pedacinhos do mundo que me rodeava. Quando regressei à sala do hotel, a Martine lamentou, Talvez seja por minha causa, tenho cinco gatos. Sentei-me junto dela, o anti-histamínico começava a fazer efeito. A Eliete é feminista?, é uma heroína dos nossos tempos?

Susa Monteiro


Que pena esta miúda ter nascido do lado errado, se fosse um rapaz… ouvi o meu pai dizer à minha mãe no dia em que aprendi a ler sozinha, o meu pai estava tão orgulhoso da minha proeza. Muitos anos mais tarde, contei-lhe que tinha ouvido a conversa deles. O meu pai não se lembrava, negou que ela tivesse acontecido. Mas se eu era ainda muito pequena no dia em que aprendi a ler, no final da quarta classe já havia crescido o suficiente para que não houvesse qualquer fantasia na memória que guardo de ele a despedir-se da minha professora, a professora acabara de elogiar-me, desejava-me felicidades, e o meu pai, Se esta miúda não tivesse nascido do lado errado, podia ser o que quisesse.

O meu pai não dizia estas coisas por mal. Nascido em 1929, numa aldeia transmontana, cresceu a ver o meu avô agredir violentamente a minha avó. Ser rapaz tinha-o poupado aos maus-tratos e desde muito cedo começou a instruir-me, Tens de tirar um curso, não podes depender de um homem, a voz do meu pai sempre presente nas aulas, Esforça-te por seres boa aluna, os estudos são o passaporte para a tua independência.

Em criança, ainda tentei compensar a falta do cromossoma Y. Subia mais depressa às árvores do que os rapazes do bairro, tinha em geral melhor resultado escolar do que eles, usava o cabelo curto e abominava bonecas e vestidos, Parece mesmo um rapazinho, diziam as vizinhas à minha mãe, levando-me a pensar que, afinal, era fácil corrigir o erro. Só que à medida que o meu corpo foi crescendo, as vizinhas, os familiares, as professoras alertavam a minha mãe, É uma maria-rapaz, Se não tem mão nela, não se livra de um desgosto, Há coisas que uma menina não deve fazer. A lista das coisas que uma menina não devia fazer aumentava de dia para dia, assim como a dos cuidados que uma menina devia ter, uma humilhante lista escrita ao longo dos séculos que, ainda que eu me rebelasse contra ela, ia condicionando o meu pensamento, a maneira de me comportar, as minhas opções de vida.

A sua escrita é pelo menos feminina?, continuou a Martine, possivelmente insatisfeita com a resposta que lhe terei dado, devolvendo-me ao hotel e ao presente, Não sei o que é escrita feminina, escrevo com tudo o que sou, com tudo o que vivi, sou mulher, não posso nem quero fugir disso. Também não podia fugir do meu corpo em pé de guerra, a produzir disparatadamente histamina que, em vez de me proteger, me agredia. Que fazer se um corpo se torna excessivamente reativo?, se o deixarmos descontrolado ele acaba por virar-se contra si mesmo, se o moderarmos ele baixa sonolentamente as defesas, quer em relação a perigos inventados quer a reais. Eu começava a sentir os efeitos secundários do anti-histamínico.

Há arte feminina e masculina? Amolecida, fiz um esforço para encontrar uma resposta em que me reconhecesse.

As mulheres só acederam recentemente ao poder e a arte é uma forma de poder. Aliás, por a arte ser indevidamente desvalorizada – e consequentemente desprezado o seu poder – algumas mulheres foram criadoras de obras artísticas muito antes de lhes ter sido permitido aceder a outras formas de poder entendidas como mais importantes. Sempre, claro está, numa desproporção gigantesca em relação aos homens. Mas não penso que haja uma arte feminina ou masculina, isso seria negar ao criador o gesto artístico de se ampliar, de ser diferente, de ser outro. Tenho em mim todos os outros e todo o mundo, criar é procurar um leito diferente daquele em que a biologia, a sociedade e a cultura me verteram, procurar caminhos por onde possa – qual rio – desaguar no mar. Independentemente de esse mar ser a morte ou a eternidade.

Acha que a eternidade será igual para os homens e para as mulheres?, desafiou-me a Martine, o gravador já desligado. Despedimo-nos com a distância imposta pela pandemia e pelo peso soturno do Panteão.

Aux femmes, ma grande reconnaisance.

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