quinta-feira, junho 16

Auto da cabra

Madrugada. O hospital , como o Rio de Janeiro, dorme. O porteiro vê diante de si uma cabrinha malhada, e pensa que está sonhando.

- Bom palpite. Veio mesmo na hora. Ando com tanta prestação atrasada, meu Deus.

A cabra olha-o fixamente:

- Está bem, filhinha. Agora pode ir passear. Depois você volta , sim?

Ela não se mexe ,séria.

- Vai , cabrinha, vai. Seja camarada. Preciso sonhar outras coisas. É a única hora em que sou dono de tudo, entende?

O animal chega-se mais perto dele, roça-lhe o braço. Sentindo-lhe o cheiro, o homem percebe que é de verdade, e recua.

- Essa, não ! O que é que você veio fazer aqui, criatura? Dê o fora, vamos .

Repele-a com um gesto manso , porém a cabra não se move, encarando-o sempre.

- Aiaiai! Bonito.Desculpe, mas a senhora tem de sair com urgência, isto aqui é um estabelecimento público. ( Achando pouco convincente a razão.)Bem, se é público devia ser para todos , mas você compreende….( Empurra-a docemente para fora, e volta à cadeira.)

- O quê? Voltou? Mas isso é hora de me visitar , filha? Está sem sono? Que é que há? Gosto muito de criação, mas aqui no hospital, antes do dia clarear……( Acaricia-lhe o pescoço.) Que é isso! Você está molhada? Essa coisa pegajosa….O quê; sangue?!?! Por que não me disse logo cabrinha de Deus? Por que ficou olhando assim feito boba? Tem razão : eu é que não entendi, devia ter sacado logo. E como vai ser? Os doutores daqui são um estouro, mas cabra é diferente, não sei se eles topam. Sabe de uma coisa ? Eu mesmo vou te operar!!!

Corre à sala de cirurgia, toma um bisturi, uma pinça : à farmácia pega mercúrio-cromo, sulfa e gaze; e num canto do hospital , ajudado por dois serventes , enquanto o dia vai nascendo , extrai do pescoço da cabra uma bala de calibre 22, ali cravada quando o bichinho, ignorando os costumes cariocas da noite , passara perto de uns homens que conversavam à porta de um bar .

O animal deixa-se operar com a maior serenidade. Seus olhos envolvem o porteiro numa carícia agradecida.

- Marcolina. Dou-lhe este nome em lembrança de uma cabra que tive quando garoto, no Icó. Está satisfeita , Marcolina?

- Muito, Francisco.

Sem reparar que a cabra aceitara o diálogo, e sabia seu nome, Francisco continuou:

- Como você teve a ideia de vir ao Miguel Couto? O Hospital Veterinário é na Lapa.

- Eu sei, Francisco. Mas você não trabalha na Lapa, trabalha no Miguel Couto.

- E daí?

- Daí, preferi ficar por aqui mesmo e me entregar a seus cuidados.

- Você me conhecia?

- Não posso explicar mais do que isso, Francisco.As cabras não sabem muito dessas coisas. Sei que estou bem ao seu lado, que você me salvou. Obrigada , Francisco.

E lambendo-lhe afetuosamente a mão fechou os olhos para dormir; bem que precisava.

Aí Francisco levou um susto, saltou para o lado:

- Que negócio é este???cabra falando? Nunca vi coisa igual na minha vida. E logo comigo, meu pai do céu!!!

A cabra descerrou um olho sonolento , e por cima das barbas parecia esboçar um sorriso:

- Mas você não se chama Francisco, não tem nome do santo que mais gostava dos animais neste mundo?Que tem isso, trocar umas palavrinhas com você? Olhe, amanhã vou pedir ao Ariano Suassuna que escreva um auto de cabra, em que você vai para o céu, ouviu?

Final 
Que um dia Francis Jammes abra
lá no alto, seu azul aprisco,
Mande entrar Marcolina, a cabra
e seu bom amigo Francisco
Carlos Drummond de Andrade

Nenhum comentário:

Postar um comentário