sábado, junho 11

Um anúncio

Leio num jornal de bastante circulação na capital da República este anúncio curioso em letras grandes: “Intelectual sem emprego. Amadeu Amaral Júnior , jornalista desempregado, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido...”. Sinto um arrepio e acompanho de longe os diferentes gestos e frases que essa publicação naturalmente provocaria entre as diversas espécies de leitores — razões espalhadas e incompletas, fragmentos de verdades contraditórias. E, como os outros leitores, penso coisas inconciliáveis, deixo escapar, num espanto verdadeiro, algumas exclamações de sentido vário.

A primeira ideia que me chega é desfavorável a Amadeu Amaral Júnior homem de letras, agora inúteis: acho que ele procedeu mal expondo com franqueza as suas necessidades. Evidentemente esse apelo à caridade que se imprime nos diários traz prejuízo à numerosa e vaga classe dos intelectuais. Afinal que vem a ser isso? Quais são os membros dessa classe? Os que escrevem para se livrar do tédio, investigam questões difíceis e levantam a cabeça — ou os que produzem artigos de encomenda, atrapalham-se nas dívidas e olham o chão com desgosto, porque os buracos dos sapatos insubstituíveis aumentam?

Amadeu Amaral Júnior, articulista sem trabalho, não pertence ao primeiro grupo, é claro. Mas o público ignora essas diferenças. Pois um sujeito que escreve declara em anúncio que tem fome e anda com as calças furadas? Ninguém pergunta donde veio Amadeu Amaral Júnior , que fez, que ideia sustentou ou combateu. Ninguém pergunta se ele tem ideias. Amadeu Amaral Júnior aparece como escritor, num canto de jornal, pedindo esmolas, porque tem o estômago vazio e a camisa em tiras. É horrível.

— Literatura! Boceja um funcionário de subúrbio.

Na opinião dele, um escritor não possui estômago nem camisa. O escritor é um símbolo. E o país necessita de símbolos. Amadeu Amaral Júnior, esse homem louro e fichado, é um símbolo. Não deveria trazer-nos o espetáculo das suas misérias: sapatos estragados e fundilhos rotos, incompatíveis com a profissão de símbolo.

Os meus sentimentos brigam, uma grande piedade me atira a Amadeu Amaral Júnior. Agora não julgo que ele tenha procedido mal. Vejo-o desocupado, trocando as pernas pelas calçadas, forjando à toa projetos irrealizáveis, rondando as mesas dos cafés sem poder sentar-se. Os níqueis se sumiram e é preciso não ampliar o rasgão das calças. Pobre Amadeu Amaral Júnior. Em casa, na casa pior que a cadeia, no quarto escuro da pensão desconhecida, talvez use aquelas medonhas cuecas pretas que vestia há dois anos, passe as noites caminhando como um sonâmbulo ou compondo, para não perder o hábito, dezenas de crônicas que ficam inéditas ou não representam valor.

Refletindo, digo comigo que o jornalista não foi impudente exibindo-se assim cheio de precisões, com os cotovelos roídos e as bainhas das calças esfiapadas. É possível que ele tenha sido impelido por um excesso de amor-próprio, uma vaidade imensa que os fiapos das bainhas e as manchas do casaco irritam. Comparando-se a outros que estão livres dessas inconveniências, reputa-se acima de muitos — e publica o seu escandaloso pedido lembrando-se de tipos ilustres que mendigaram. Considera-se vítima duma injustiça. O anúncio barulhento não é, pois, declaração de insuficiência do autor, é grito de protesto, ataque à sociedade que não compreende. Amadeu Amaral Júnior nos aparece como criança zangada que não pode sofrer em silêncio, bate o pé e deseja que todos conheçam a sua zanga.

Se ele dispusesse duma coluna de jornal a sua pobreza seria menor e revelar-se-ia sob forma artística; não dispondo, redige com raiva o anúncio espalhafatoso. O seu ofício é redigir, não sabe fazer outra coisa e não quer ficar de braços cruzados. Lança a queixa violenta, que, pelo menos durante alguns dias, chamará para ele a atenção do público.

Enfim o procedimento de Amadeu Amaral Júnior mostra coragem. Supomos a princípio que ele não está com a cabeça regulando bem e acabamos reconhecendo que o seu ato não foi tão desarrazoado como parecia. O que há é que não estamos habituados a ler coisas desse gênero. Mas se todos os literatos fossem francos como Amadeu Amaral Júnior, quantos pedidos de roupa velha, níqueis e pão duro surgiriam nas folhas! Se elas quisessem publicar isso de graça, naturalmente.
Graciliano Ramos, Revista Esfera, ano 1, nº 1, maio de 1938

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