sexta-feira, junho 10

O sobrado

Joan Llimona
Não preciso recriar o sobrado de Joaquim Feijó de Melo porque este eu conheci. Basta recordar. Nele entrei pela primeira vez, em 1905, com pouco mais de dois anos, quando fui ao Ceará para me batizar. Não tenho dessa viagem senão a vaga recordação da forma de uma escotilha - redonda e duramente luminosa, feito lâmpada cialítica - e, do lado de fora, alguma coisa oscilando como o ponteiro dum metrônomo, ponta de madeira e pano, decerto mastro de falua encostada em navio atracado. Dizia minha Mãe que era preciso não me perder de vista nem um instante, pois tudo que me caía às mãos (comida, uma pulseira, vários sapatos, mapa, um par de brincos de coral, escovas, todas as chaves das malas, duas bengalas, vários livros) era imediatamente atirado pelas escotilhas ou bordo acima - para meus amigos delfins e peixes-voadores. Nunca conheci madrinha de carregar, pois fui para o batismo com minhas próprias pernas, andando o trecho da Rua Formosa que vai até a Santa Casa de Misericórdia, em cuja capela recebi (em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo) o sal, o óleo, a saliva, a afusão e o nome de meu avô. Foram meus padrinhos a mãe e o padrasto do meu Pai. Não guardei lembrança, mas devo ter conservado no recôndito de minhas células a influência profunda das frutas da terra que, para terror de minha Mãe, minha avó me deixava comer até perder a respiração. Nu em pelo, para não manchar a roupa, eu ficava sentado na areia do terreiro, devorando pilhas de mangas e cajus. Quando não podia mais, quando já estava em ponto de arroto, regurgitação e vômito, besuntado dos pés à cabeça do caldo dourado e doce, vinha minha avó (para renovada angústia de minha Mãe, temente das câmaras de sangue, dos catarros e do estupor) com um regador de água fria e me enxaguava torrencialmente. Em fevereiro de 1919 voltei à Rua Formosa (que já não era mais Formosa, mas Barão do Rio Branco) em viagem ao Ceará para conhecer melhor a mãe de meu Pai. Já era com Deus o velho Feijó, falecido a 21 de outubro de 1917. Na casa moravam minha avó, sua irmã Marout, suas filhas Dinorá e Alice, seu genro, marido da última, Antônio Salles. Como era simples, acolhedor e pacífico o sobrado de minha avó! Todo aberto ao sol, aos ventos, aos pregões, às visitas, aos mendigos.

Pedro Nava, "Baú de ossos"

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