domingo, junho 26

Shakespeare em Brazzaville

Não tenho nenhuma palavra preferida. Contudo, algumas me fascinam mais do que outras. Uma delas migrou do francês para a nossa língua nos finais do século XIX; porém, nunca se chegou a estabelecer e a prosperar. Refiro-me a flâneur, que poderíamos tentar traduzir, sem muito sucesso, por perambulador, passeador, vagueador ou deambulador. Há quem credite a invenção do termo a Baudelaire. Não terá sido o poeta a inventá-la, mas impôs-lhe dignidade e até uma certa aura mítica. Graças a Baudelaire, flanar deixou se ser uma desatividade própria de vadios, para se transformar num deambulamento jubiloso e filosófico. O flâneur passeia pela cidade para dela se apropriar.

Desde Baudelaire, vários autores têm se dedicado a catalogar os diversos tipos de flâneurs. Creio ter descoberto um novo gênero, particularmente singular e contemporâneo: o flâneur bantu.

Na capital de Brazzaville, na República do Congo, emergiu nas últimas duas décadas um curioso fenômeno urbano — o sapeur, acrônimo de Societé des Ambianceurs et des Personnes Élegantes (mal traduzido seria Sociedade dos Animadores e Pessoas Elegantes). O sapeur combina roupas de grife, que compra em Paris, Londres ou Tóquio, normalmente de cores muito vivas, desfilando com elas pelas estreitas e poeirentas ruas de terra batida das periferias da capital congolesa. O desfile dos sapeurs, ao cair da tarde, em Brazza, é um espetáculo extraordinário, capaz de competir em fulgor com a revoada dos guarás vermelhos, no Delta do Parnaíba, Piauí, de onde, aliás, estou escrevendo estas linhas.

Ser sapeur é ao mesmo tempo ofício e estilo de vida. O flâneur bantu pode ser considerado a rara variante erudita do sapeur. Tomemos como exemplo o escritor congolês Alain Mabanckou, que dá aulas de literatura africana na Universidade da Califórnia, nos EUA, e, nos intervalos, passeia a sua elegância, erudição e seu bom humor pelos festivais literários do mundo todo. Vale a pena ler “Black Bazar”, de Mabanckou, publicado no Brasil pela editora Malê, cujo narrador é precisamente um sapeur.

Em Brazzaville, assistindo à revoada dos sapeurs, também eu caí na tentação fácil de julgar o fenômeno como uma exibição gratuita de vaidade, tanto mais condenável por ocorrer num país particularmente desvalido. Então, conheci François Tata Kitoko, um puro flâneur bantu:

— Toda a manifestação de beleza é uma oração — disse-me François. — Embora nem sempre essa oração tenha um destinatário concreto.

Tata Kitoko deambula por Brazzaville exibindo os seus blazers de seda, calças a condizer e sapatos italianos, e armado com a fé e o esplendor de um demiurgo. O flâneur bantu cria a cidade à medida que a percorre, salvando-a da crueldade dos dias cinzentos. Onde antes eu apenas via futilidade e narcisismo, passei a enxergar futilidade e narcisismo — mas também uma pequena hipótese de redenção. Como me disse Tata Kitoko à despedida, terminando de beber a derradeira cerveja da noite:

— O sapeur não é um revolucionário. Mas também não é um conformista. Os melhores são feitos da mesma matéria que os sonhos…

Foi assim que encontrei Shakespeare em Brazzaville. 

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