segunda-feira, junho 20

O melhor presente

Após uma tentativa, frustrada, regressei finalmente ao Brasil, aonde não vinha desde o início da pandemia. A primeira tentativa, para participar do Salão Carioca do Livro, falhou, ao receber um teste positivo para a Covid, dois dias antes da viagem. Desta vez deu tudo certo, tendo conseguido desembarcar em Teresina, a convite do Salão do Livro do Piauí.

Para um escritor, festivais literários são importantes porque nos permitem avaliar a forma como os leitores estão recebendo os nossos livros, algo que o colapso da crítica literária tornou ainda mais urgente. São também uma oportunidade para rever amigos e descobrir outros escritores. 

Festivais virtuais, como aqueles que a pandemia popularizou, não permitem nada disso. Estou certo de que vieram para ficar, como tantas outras invenções pandêmicas, e que continuarão conosco, mesmo depois que o vírus deixar de ser notícia — mas acho que nunca me habituarei a eles. 

Além do mais, estava ansioso por abraçar pessoas. Gosto da confusão que se gera após os debates, com os leitores pedindo autógrafos, selfies e beijos. Agrada-me, sobretudo, a surpresa que tais encontros permitem. 

Há 30 anos que frequento festivais literários e já me aconteceu um pouco de tudo. Algumas vezes enfrentei multidões; outras encontrei-me diante de meia dúzia de pessoas, que não faziam a menor ideia de quem eu era. Recordo uma ocasião, numa aldeia perdida, no interior da Normandia, em que palestrei para uma plateia de duas pessoas — e as duas adormeceram enquanto eu contava piadas no meu francês hesitante.

Por vezes, os leitores trazem-nos presentes: poemas, livros, doces ou histórias. Gosto sobretudo das histórias. “Vou lhe contar uma história que daria um romance” — começam. Muitas vezes são histórias que realmente dariam um romance. Não, contudo, um romance escrito por mim. Nessas alturas, sempre insisto com os meus leitores para que eles próprios escrevam a história. 

Certa madrugada, numa pequena cidade do leste da Alemanha, fui acordado pelo zumbido agressivo do telefone do quarto do hotel onde me haviam alojado. Era o recepcionista, dizendo-me que alguém esperava por mim, no hall. Vesti-me às pressas e desci, despenteado, mal-humorado, e um pouco assustado. Quem poderia querer falar comigo às seis da manhã? Era um jovem angolano. Viera para a Alemanha dois anos antes. Trabalhava na construção civil, durante o dia, e de noite estudava enfermagem. Ao comentar sobre a minha palestra com os outros operários, quase todos alemães, estes haviam troçado dele, duvidando que na África existissem escritores. Então, o meu jovem compatriota desafiara-os a todos, e, na noite anterior, tinha ido com eles assistir ao debate.

— Quero agradecer-lhe porque me devolveu o orgulho de ser angolano — Disse-me. — Pensei em oferecer-lhe alguma coisa, mas sou pobre. Depois lembrei-me desta caneta, que o meu pai me deu quando eu saí de Angola, e que era do meu avô. Agora é sua!

Estendeu-me a caneta. Foi o melhor presente que recebi em toda a minha vida.

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