segunda-feira, dezembro 26

Livros e caracóis

Um bibliófilo pobre tem infinitas ocasiões de sofrer. Os livros não lhe fogem das mãos mas, em compensação, passam pelo ar, a voo de pássaro, a voo de preços.
No entanto, entre muitas explorações, surge a pérola.

Lembro-me da surpresa do livreiro Garcia Rico, em Madri, em 1934, quando propus comprar dele uma antiga edição de Góngora que custava apenas 100 pesetas, em mensalidades de 20. Era bem pouco dinheiro mas eu não o tinha. Paguei pontualmente ao longo daquele semestre. Era a edição de Foppens, editor flamengo do século XVII que imprimiu em incomparáveis e magníficos caracteres as obras dos mestres espanhóis do Século de Ouro.

Não gosto de ler Quevedo senão naquelas edições onde os sonetos se desdobram em linha de combate com férreos navios. Depois me internei na selva das livrarias, pelos desvãos suburbanos das de segunda mão ou pelas naves catedralícias das grandiosas livrarias da França e da Inglaterra. Saía com as mãos empoeiradas mas de vez em quando obtive algum tesouro – ou pelo menos a alegria de pensar que assim fora.

Prêmios literários marcantes e sonantes me ajudaram a adquirir certos exemplares de preços extravagantes. Minha biblioteca passou a ser considerável. Os antigos livros de poesia relampejavam nela e minha inclinação para a história natural encheu-a de grandiosos livros de botânica com iluminuras coloridas; e livros de pássaros, de insetos ou de peixes. Encontrei pelo mundo milagroso livros de viagens, Quixotes incríveis, impressos por Ibarra, infólios de Dante com os maravilhosos tipos bodôni. Até alguns Molières em edições limitadas, “Ad usum delphini”, para o filho do rei da França.

Mas em realidade o melhor que colecionei em minha vida foram meus caracóis. Deram-me o prazer de sua prodigiosa estrutura: a pureza lunar de uma porcelana misteriosa agregada à multiplicidade das formas, táteis, góticas, funcionais.

Milhares de pequenas portas submarinas se abriram para meu conhecimento desde aquele dia em que D. Carlos de la Torre, ilustre malacólogo de Cuba, me presenteou com os melhores exemplares de sua coleção. Desde então e ao acaso de minhas viagens, percorri os sete mares espreitando-os e buscando-os. Mas devo reconhecer que foi o mar de Paris que, entre uma onda e outra, descobriu para mim mais caracóis. Paris havia transmigrado todo o nácar dos oceanos para suas lojas naturalistas, para seus “mercados de pulgas”. Mais fácil que meter as mãos nas rochas de Veracruz ou Baja California foi encontrar sob o sargaço urbano, entre lâmpadas rotas e sapatos velhos, a delicada silhueta da Oliva Textil. Ou surpreender a lança de quartzo que se alonga, como um verso de água, na Rosellaria Fusus. Ninguém me tirará o deslumbramento de ter tirado do mar o Espondylus Roseo, grande ostra tacheada de espinhos de coral. E mais adiante entreabrir o Espondylus Blanco, de espinhos nevados como estalagmites de uma gruta gongórica.

Alguns destes troféus poderiam ser históricos. Lembro que no Museu de Pequim abriram a caixa mais sagrada dos moluscos do mar da China para me fazer presente do segundo dos dois únicos exemplares da Thatcheria Mirabilis. E assim pude arrebanhar o tesouro dessa inacreditável obra com que o oceano presenteou a China no estilo de templos e pagodes que perduram naquelas latitudes.

Demorei trinta anos para juntar tantos livros. Minhas prateleiras guardavam incunábulos e outros volumes que me comoviam; Quevedo, Cervantes e Góngora, em edições originais, assim como Laforgue, Rimbaud e Lautréamont. Estas páginas me pareciam conservar o tato dos poetas amados. Tinha manuscritos de Rimbaud. Paul Éluard me deu de presente em Paris, por meu aniversário, as duas cartas de Isabelle Rimbaud para sua mãe, escritas no hospital de Marselha onde o nômade teve uma perna amputada. Eram tesouros ambicionados pela Biblioteca Nacional de Paris e pelos vorazes bibliófilos de Chicago.

Tanto corria eu pelo mundo que minha biblioteca cresceu desmedidamente, ultrapassando as condições de uma biblioteca particular. Certo dia presenteei a grande coleção de caracóis que levei vinte anos para juntar e aqueles cinco mil volumes escolhidos por mim com o maior amor em todos os países. Presenteei-os à universidade de minha pátria. Foram recebidos como dádiva cintilante pelas bonitas palavras de um reitor.

Qualquer homem esclarecido pensará no regozijo com que receberiam no Chile essa doação minha. Mas existem também homens não esclarecidos. Um crítico oficial escreveu artigos furiosos. Protestava com veemência contra meu gesto. 
Quando se poderá interceptar o comunismo internacional?, proclamava. Outro senhor fez no parlamento um discurso inflamado contra a universidade por ter aceito meus maravilhosos cunábulos e incunábulos, ameaçando cortar os subsídios que ela recebia do Instituto Nacional. O articulista e o parlamentar lançaram uma onda de gelo sobre o pequeno mundo chileno. O reitor da universidade ia e vinha pelos corredores do congresso. desarvorado.

O certo é que se passaram vinte anos do fato e ninguém tornou a ver nem meus livros nem meus caracóis. É como se houvessem retornado às livrarias e ao oceano.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"

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