quarta-feira, dezembro 14

Sonhar em casa

Eu venho de muito longe e trago aquilo que acredito ser uma mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge Amado não foi apenas o mais lido dos escritores estrangeiros. Ele foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura dos países africanos que falam português.
A nossa dívida literária para com o Brasil começa há séculos atrás, quando Gregório de Matos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram restritos e não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras deixadas pelo autor baiano.

Deve ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições diplomáticas juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura. Nesta sala estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e criaram pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e Caetano Veloso. Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos países que encontraram luz e inspiração na vossa música, na vossa poesia. Para Alberto Costa e Silva vai o nosso agradecimento pelo empenho sério no estudo da realidade histórica do nosso continente.

Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário colectivo.

É preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz, Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e tantos, tantos outros.


Em minha casa, meu pai — que era e é poeta — deu o nome de Jorge a um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial. Recordo-me de que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse mesmo Brasil.
Neste breve depoimento eu gostaria de viajar em redor da seguinte interrogação: Porquê este absoluto fascínio por Jorge Amado, porquê esta adesão imediata e duradoura?

É sobre algumas dessas razões do amor por Amado que eu gostaria de falar aqui.
É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente na qualidade do texto do escritor baiano.

Eu tenho para mim que o maior inimigo do escritor pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é escrevê-lo demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa, e soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de histórias e um notável criador de personagens. Recordo o espanto de Adélia Prado, que, após a edição dos seus primeiros versos, confessou: “Eu fiz um livro e, meu Deus, não perdi a poesia...”. Também Jorge escreveu sem deixar nunca de ser um poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.

Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa íntima, uma conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Baía e se estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluido e espreguiçado, Jorge vai desfiando prosa e as suas personagens saltam da página para a nossa vida quotidiana.

O escritor Gabriel Mariano, de Cabo Verde, escreveu o seguinte: “Para mim a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros e estava a ver a minha terra. E quando encontrei o Quincas Berro d’Água eu estava a vê-lo na ilha de São Vicente, na minha rua de Passá Sabe…”.

Esta familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos nossos países. As suas personagens eram vizinhas não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.

Em Angola, o poeta Mário António e o cantor Ruy Mingas compuseram uma canção que dizia:

Quando li Jubiabá
me acreditei Antônio Balduíno.
Meu Primo, que nunca o leu
ficou Zeca Camarão.


E era esse o sentimento: Antônio Balduíno já morava em Maputo e em Luanda antes de viver como personagem literária. O mesmo sucedia com Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com Tieta, com Dona Flor e Gabriela e com tantas outras personagens fantásticas.

Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava a África. Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado mas era um espaço mágico onde nos renascíamos criadores de histórias e produtores de felicidade.

Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil — tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade — nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.

Falei de razões literárias e de outras quase ontológicas que ajudam a explicar porque Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros motivos, talvez mais circunstanciais.

Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado eram objeto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores foram perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o nosso irmão brasileiro surgia, pois, com o épico sabor da afronta e da clandestinidade. A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da liberdade também contribuiu para a mística da escrita e do escritor. O angolano Luandino Vieira, que foi condenado a catorze anos de prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964 fez passar para além das grades uma carta em que pedia o seguinte: “Enviem o meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele consegue publicar lá, no Brasil”.
Na realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como uma bandeira. Há um poema da nossa Noémia de Sousa que se chama “Poema de João”, escrito em 1949, e que começa assim:

João era jovem como nós
João tinha os olhos despertos,
As mãos estendidas para a frente,
A cabeça projetada para amanhã,
João amava os livros que tinham alma e carne
João amava a poesia de Jorge Amado.


E há, ainda, uma outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro lado do mundo se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua.

Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

O poeta maior de Moçambique, José Craveirinha, disse o seguinte numa entrevista: “Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve uma influência tão grande que, em menino, eu cheguei a jogar futebol com o Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos obrigados a passar por João de Deus, um D. Dinis, pelos clássicos de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos libertamos com a ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou a ser um reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado, nós tínhamos chegado a nossa própria casa”.

Craveirinha falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em casa. Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos, companheiro Jorge.
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