quarta-feira, dezembro 28

Cosmogonia

O hotel aqui não é grande coisa, mas tem uma privada de primeira. Defequei esplendidamente, como não o fazia há muito tempo — depois, acendi um charuto e saí a rodar discretamente pelo bairro, para tomar posição e ver se descobria em que país afinal me encontro, já que não me ficaria bem perguntar essas coisas ao dono do hotel ou ao primeiro transeunte que encontrasse. A língua oficial, ao que tudo indica, é a língua portuguesa, mas isso não adianta grande coisa na solução do mistério, pois tanto posso estar em Portugal como no Brasil, para não dizer nas ilhas dos Açores ou numa das muitas possessões que Portugal mantém na África ou na Ásia, se é que ainda as mantém. Ouvi também um pouco de espanhol — mas foi num rádio do bar da esquina, e pode ser que se tratasse apenas de um programa de boleros ou de tangos, como os que se ouvem em qualquer cidade da China ou na Bessarábia. A solução será mesmo comprar um jornal da tarde e ler no cabeçalho o nome da cidade em que é editado, pois não é admissível que os jornais aqui venham de outra cidade ou deixem de lembrar diariamente aos seus leitores que o nome da sua capital é X e não Y, como lhes lembra que hoje é quinta-feira e não sexta e que estamos nos meados do século XX e não do XIX.

Mas, enquanto persiste o mistério, sento-me à mesa de um bar e peço de uma vez oito copos de cerveja gelada, que vou emborcando silenciosamente sob o olhar atento de um menino maltrapilho, que certamente nunca viu ninguém tão rico quanto eu. (E se eu lhe perguntasse pelo nome da cidade, será que ele não perderia o respeito por mim, o grande respeito que advém dos oito copos de cerveja formados em fila indiana e que vou sorvendo com a calma sabedoria de um Buda?) Deixo-o fitar-me enquanto me embebedo, e, uma vez bêbado, atiro-lhe com um copo na cara e ameaço corrê-lo a pontapés, o que provoca a intromissão indébita do meu truculento vizinho da esquerda, que a viva força quer expulsar-me do bar e talvez do país.

Serenados os ânimos, não sem uma polpuda esmola de minha parte ao pequeno maltrapilho, dirijo-me em alemão ao meu vizinho da esquerda e, em tom amabilíssimo, cheio de sorrisos, mando-o para o inferno e para outros lugares ainda menos recomendáveis, o que provoca de sua parte um gesto amigável e algumas palavras, em português, do mais puro reconhecimento.

Quando dou por mim, muito tempo depois, estou sentado num banco de praça, ao lado de uma mulher gorda que não sei se ali está levada por mim ou se por conta própria, pois de fato não me lembro bem nem do meu nome nem do país ou do planeta em que estou, de tal forma me gira a cabeça e com ela todo o resto do corpo. A mulher gorda, seja ou não minha amante, não me dá a mínima importância e continua a fitar o vácuo à sua frente com o ar mais hierático deste mundo, como se fora um boneco de cera ou a própria estátua da Prostituta Desconhecida.

Afinal, após um vômito breve, consigo levantar-me com relativa facilidade — e, já senhor do meu pensamento, convido a respeitável matrona a passar comigo aquela noite, mostrando-lhe uma nota de mil francos e por conseguinte minhas boas intenções a seu respeito. A caminho do hotel, percebo que a mulher manca horrivelmente da perna esquerda e que é muito mais feia do que eu pensava, além de ter um hálito capaz de provocar verdadeira guerra bacteriológica num raio de dez quilômetros. Mas, como estou lírico e ainda não tenha vomitado toda a minha alma, levo-a assim mesmo para o quarto e ali a possuo por três vezes seguidas — duas por minha conta e uma em nome do meu irmão gêmeo e sepulto em mim — o que a faz lamentar ser tão pequena a minha família e tão avaro o meu espírito de fraternidade.

Finda a bacanal bacteriológica, levo o meu monstro coxo até um restaurante próximo, onde jantamos furiosamente e, entre uma garfada e outra, nos tratamos pelos nomes mais carinhosos possíveis, sob o espanto visível do garçom vesgo que nos serve. Quando ganhamos a rua já passa da meia-noite (pelo relógio do enforcado) e, após acordar toda a vizinhança com os nossos gritos obscenos, despedimo-nos como dois líricos namorados, não sem antes copularmos mais uma vez, em plena rua, ao som da uma valsa vienense que vem de dentro de um palacete feericamente iluminado.

Chegado ao hotel, verifico com espanto que fui roubado em minha carteira pela infame megera, certamente por ocasião da última cópula ao som do Danúbio Azul, o que me faz sair às pressas em busca do meu prestimoso enforcado, a ver se consigo arrancar-lhe a roupa, os sapatos e algum outro bem que porventura me tenha escapado por ocasião do primeiro saque. Na rua da Liberdade, porém, a madrugada reina impassível e sem fantasmas, e o corpo do meu amigo já não balouça mais como uma lanterna chinesa à luz fosca do lampião, certamente por já ter sido descoberto pela polícia e pela família inconsolável. Sento-me no meio-fio e, como um desesperado, choro pela madrugada adentro, tendo por única companhia a lua cheia sobre a cabeça e a sombra do meu irmão refletida numa poça d’água sob os meus pés.
Campos de Carvalho, "A Lua vem da Ásia"

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