sábado, março 9

Homem olhando o mar

Ela carregava a pasta contra o peito e caminhava com estudada displicência1– o que, decerto modo, disfarçava a deselegância do uniforme... Deu uma corridinha para atravessar a rua e depois secompenetrou2, tentando fazer-se adulta. Logo se distraía, de vitrine em vitrine, com seu próprio corpo que passava refletido no vidro – às vezes estacando3paraolhar um vestido, uma bolsa, um sapato. "Bárbaro!", murmurava. Na esquina se deteve junto à carrocinha de sorvete:– De chocolate! A mãe era capaz de dizer que não ficava bem uma moça de treze anos tomando sorvete pela rua afora. Ainda mais nesse passinho, saltitante, evitando as listras pretas da calçada, só pisando nas brancas. Pouco se importava: uma coisa que não ficava bem, ela gostava de fazer. Por exemplo: tirar o sapato ali mesmo e andar descalça, dava vontade. Outro exemplo: matar a última aula, pois não era isso mesmo? Sorvete acabado, ficou pensando se agora não seria o caso de comprar um saco de pipocas. Enquanto decidia, olhava os cartazes de cinema. Por um instantinho teve a tentação de entrar. Isto é, se o dinheiro desse. Isto é, se desse tempo. Isto é, se não tivesse visto aquele filme.–  Amanhã vou pedir ao papai – afirmou, como se falasse para o próprio sapatinho branco na vitrine logo adiante. "Bárbaro também". O pai, naquele instante na cidade, trabalhando no escritório. O que eu estou precisando é de tomar juízo, concluiu. Mas, francamente: só a última aula. Ainda mais numa tarde tão bonita como aquela. Virou a esquina e seguiu em direção ao mar. Omar... Ondas que se quebravam lá adiante, espumando verde. Ao longe, cruzando a barra, um navio branco. O azul do céu sem uma nuvem, a areia dourada. Foi andando devagar ao longo da praia, passo a passo, reconciliada com o mundo, leve, distraída, olhando o mar. De repente estacou, surpresa. Num dos bancos, logo adiante, um homem também olhando o mar. Um homem alto como seu pai, meio curvado como seu pai, olhando o mar. Mas àquela hora, sentado sozinho num banco de praia, paletó largado ao colo, olhando o mar? Virou rapidamente o rosto, porque ele se movera e já podia tê-la visto. Deu-lhe as costas e atravessou a rua, aturdida4com a descoberta: ele também matava aula para ficar olhando o mar. Antes de desaparecer na esquina, arriscou ainda um olhar furtivo5para confirmar: lá estava ele. Teve a impressão de que agora ele é que virava o rosto para não ser reconhecido. Por via das dúvidas, foi logo para casa. Já era tempo mesmo. Chegou à hora de sempre. A noite, ele também chegou à hora de sempre. E, durante o jantar, a uma pergunta da mulher, enfrentou toda a família com o costumeiro sorriso de cansaço. Olhou a filha meio ressabiado, mas ela já lhe devolvia o olhar, com ternura. Uma ternura de cúmplice.
Fernando Sabino, "A vitória da infância"

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