segunda-feira, março 4

Os dois quadros

Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei. A tentativa falhou, e não há melhor prova dessa derrota, ou falhanço, ou impossibilidade, do que a folha de papel em que começo a escrever: até um dia, cedo ou tarde, andarei do primeiro quadro para o segundo e depois virei a esta escrita, ou saltarei a etapa intermédia, ou interromperei uma palavra para ir pôr uma pincelada na tela do retrato que S. encomendou, ou naquele outro, paralelo, que S. não verá. Nesse dia não saberei mais do que já sei hoje (que ambos os retratos são inúteis), mas poderei decidir se valeu a pena deixar-me tentar por uma forma de expressão que não é a minha, embora essa mesma tentação signifique, no fim de tudo, que também não era minha, afinal, a forma de expressão que tenho vindo a usar, a utilizar, tão aplicadamente como se seguisse as regras fixas de qualquer manual. Não quero pensar, por agora, naquilo que farei se mesmo esta escrita falhar, se, daí para diante, as telas brancas e as folhas brancas forem para mim um mundo orbitado a milhões de anos-luz onde não poderei traçar o menor sinal. Se, em suma, for ato de desonestidade o simples gesto de agarrar num pincel ou numa caneta, se, uma vez mais em suma (a primeira vez não o chegou a ser), a mim mesmo dever recusar o direito de comunicar ou comunicar-me, porque terei tentado e falhado e não haverá mais oportunidades.

Estimam-me como pintor os meus clientes. Ninguém mais. Diziam os críticos (no tempo em que de mim falaram, breve e há muitos anos) que estou atrasado pelo menos meio século, o que, em rigor, significa que me encontro naquele estado larvar que vai da concepção ao nascimento: frágil, precária hipótese humana, ácida, irônica interrogação sobre o que farei sendo. “Por nascer.” Algumas vezes me tenho demorado a refletir sobre esta situação, que, transitória para o geral das gentes, em mim se tornou definitiva, e noto-lhe, contrariamente ao que se poderia esperar, uma certa aresta estimulante, dolorosa sim, mas agradável, gume de faca que prudentemente se tacteia, enquanto a vertigem de um desafio nos faz apertar a polpa viva dos dedos contra a certeza do corte. É isto que sinto (ou de maneira confusa, sem gumes nem polpas vivas) quando começo um novo quadro: a tela branca, lisa, ainda sem preparo, é uma certidão de nascimento por preencher, onde eu julgo (amanuense de registo civil sem arquivos) que poderei escrever datas novas e filiações diferentes que me tirem, de vez, ou ao menos por uma hora, desta incongruência de não nascer. Molho o pincel e aproximo-o da tela, dividido entre a segurança das regras aprendidas no manual e a hesitação do que irei escolher para ser. Depois, decerto confundido, firmemente preso à condição de ser quem sou (não sendo) desde há tantos anos, faço correr a primeira pincelada e no mesmo instante estou denunciado aos meus próprios olhos. Como naquele desenho célebre de Bruegel (Pieter), aparece por trás de mim um perfil talhado a enxó, e ouço a voz dizer-me, uma vez mais, que não nasci ainda.

Pensando bem, tenho honestidade bastante para dispensar vozes de crítico, de perito, de conhecedor.

Enquanto transporto meticulosamente as proporções do modelo para a tela, ouço um certo murmúrio meu interior a insistir que a pintura não é nada disto que eu faço. Enquanto troco o pincel e dou os dois passos atrás que me permitem enquadrar melhor e clarificar o novelo que sempre é um rosto “para retrato”, respondo calado: “sei” e continuo a reconstituir um azul necessário, uma terra qualquer, um branco que fará as vezes da luz que nunca poderei captar. Faço tudo isto sem contentamento, porque está nos preceitos, protegido pela indiferença que finalmente a crítica dispôs em minha volta como um bloqueio sanitário, protegido também pelo esquecimento em que pouco a pouco fui caindo, e porque sei que o quadro não irá a exposições nem galerias. Passará diretamente do cavalete para as mãos do comprador, porque é este o meu negócio, jogar pelo seguro, com dinheiro à vista. Tenho trabalho que me sobra. Faço retratos para pessoas que se estimam suficientemente para os encomendarem e pendurarem em átrios, escritórios, livingues-rumes ou salas de conselho. Garanto a duração, não garanto a arte, nem ma pedem, mesmo que eu pudesse dá-la. Uma semelhança melhorada é ao mais longe que chegam. E como nisso podemos coincidir, não há decepção para ninguém. Mas isto que faço não é pintura. Apesar das insuficiências que me deu para aqui confessar, sempre soube que o retrato justo não foi nunca o retrato feito. E mais: sempre julguei saber (sinal secundário de esquizofrenia) como devia pintar o justo retrato, e sempre me obriguei a calar (ou supus que a calar-me me obrigava, assim me iludindo e cumplicitando) diante do modelo desarmado que se me entregava, tímido, ou, pelo contrário, falsamente desenvolto, apenas certo do dinheiro com que me pagaria, mas ridiculamente assustado diante das forças invisíveis que vagarosas se enrolavam entre a superfície da tela e os meus olhos. Só eu sabia que o quadro já estava feito antes da primeira sessão de pose e que todo o meu trabalho iria ser disfarçar o que não poderia ser mostrado. Quanto aos olhos, esses estavam cegos. Assustados e ridículos estão sempre o pintor e o modelo diante da tela branca, um porque se teme de ver-se denunciado, outro porque sabe que nunca será capaz de fazer essa denúncia, ou, pior do que tudo isso, dizendo a si mesmo, com a suficiência do demiurgo castrado que se afirma viril, que só a não fará por indiferença ou piedade do modelo.

Há ocasiões em que penso e me convenço de que sou o único pintor de retratos que resta, e que depois de mim não se perderá mais tempo em poses fatigantes, a procurar semelhanças que a toda a hora se escapam, quando a fotografia, agora feita arte por obra de filtros e emulsões, parece afinal muito mais capaz de romper as epidermes e mostrar a primeira camada íntima das pessoas. Divirto-me a pensar que cultivo uma arte morta, graças à qual, por intermédio da minha falibilidade, as pessoas acreditam fixar uma certa agradável imagem de si mesmas, organizada em relações de certeza, de uma eternidade que não começa só quando o retrato se conclui, mas que vem de antes, de sempre, como alguma coisa que existiu sempre só porque existe agora, uma eternidade que é contada no sentido do zero. Na verdade, se qualquer retratado pudesse, ou soubesse, ou quisesse, analisar a espessura pastosa, informe, dos pensamentos e emoções que o habitam, e tendo analisado encontrasse as palavras correntes que tornariam líquidos e claros esses pensamentos e ações, saberíamos que, para ele, aquele seu retrato é como se tivesse existido sempre, um outro-ele mais fiel do que o-ele de ontem, porque este não é já visível e o retrato sim. Por isso não é raro que o modelo tenha a preocupação de parecer-se com o retrato, se este o fixou no relance em que o ser humano se louva e aceita. Vive o pintor para surpreender esse relance, vive o modelo para o instante que será o pilar pessoal e único dos dois ramos de uma eternidade que vem transitando infinitamente e que, algumas vezes, a loucura humana (Erasmo) julga poder assinalar com um pequeníssimo nó, uma excrescência capaz de arranhar esse dedo gigantesco com que o tempo apaga todos os vestígios. Repito que os melhores retratos nos dão a sensação de terem existido sempre, mesmo que o bom-senso me esteja dizendo, como diz agora, que “O Homem dos Olhos Cinzentos” (Tiziano) é inseparável daquele Tiziano que o pintou num momento da sua pessoal vida. Porque se neste instante em que estamos alguma coisa participa da eternidade, não é o pintor, mas o quadro.

Mal vai porém ao pintor, ou dizendo mais rigorosamente, pior vai porém ao pintor, se, tendo de pintar um retrato, descobre que tudo quanto lançou na tela é cor anárquica e desenho louco, e que o conjunto de manchas só reproduz do modelo uma semelhança que a este satisfaz, mas ao pintor não. Creio que isto acontece na maior parte dos casos, mas, porque a semelhança lisonjeia e justifica o pagamento, o modelo transporta para casa aquela sua imagem supostamente ideal e o pintor suspira de alívio, liberto da assombração irônica que lhe estava queimando as noites e os dias. Quando o quadro já pronto se demora, é como se girasse no seu eixo vertical e virasse para o pintor os olhos acusativos: poderia chamar-se-lhe fantasma se não tivesse ficado já dito que é assombração. Em geral, o pintor, se sabe do ofício o bastante, reconhece que segue caminho errado logo ao primeiro esboço. Mas porque daria muito trabalho explicar ao modelo esse erro, e porque o modelo quase sempre se agrada de si mesmo logo de entrada, receoso de que outro curso e outro apanhamento de si o mostrem sob menos favorável luz, ou, pelo contrário, o voltem de dentro para fora, em dedo de luva (movimento que mais do que todos teme), o retrato continua a deixar-se pintar, cada vez menos necessário. É como se (já o disse atrás por outras palavras) se estabelecesse entre o pintor e o modelo uma cumplicidade para a destruição do retrato: calçaram-se as botas ao contrário, de biqueira voltada para o calcanhar, e o percurso visto depois, que parece um avanço pelos sinais deixados no chão que é a tela, é apenas um recuo, a debandada de uma derrota procurada e aceite pelos dois campos combatentes. A morte, quando tirar do mundo o pintor e o modelo; o incêndio, se por feliz acaso reduzir o retrato a cinzas - apagarão alguma mentira e deixarão o lugar vago para outras tentativas e para um novo bailado, para o novo “pas-de-deux” que inevitavelmente outros recomeçarão.
José Saramago, "Manual de pintura e caligrafia"

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