quarta-feira, março 13

Viajando por mar

Nota: um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?” Ele disse: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal.” Mas eu não quero contar minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia. Mas aí vão minhas recordações de viagem por mar.

Fiz na minha vida várias viagens por mar. À medida que eu for escrevendo vou me lembrando delas.

A primeira foi com menos de dois meses de idade, da Alemanha (Hamburgo) ao Recife: não sei que meio de transporte meus pais usaram para chegar da Ucrânia, onde nasci, para Hamburgo, onde meu pai procurou emprego mas, felizmente para nós todos, não achou. Nada sei sobre essa viagem de imigrantes: devíamos todos ter a cara dos imigrantes de Lasar Segall.

Outra viagem de mar de que me lembro foi na terceira classe de um navio inglês: de Recife ao Rio de Janeiro. Foi terrivelmente exciting. Eu não sabia inglês e escolhia no cardápio o que meu dedo de criança apontasse. Lembro-me de que uma vez caiu-me feijão-branco cozido, e só. Desapontada, tive que comê-lo, ai de mim. Escolha casual infeliz. Isso acontece.

Estou agora me lembrando de uma viagem que fizemos de Gênova ao Rio, “tomei um Ita no Norte”. Meu primeiro filho já tinha nascido. Espero que hoje os navios do Ita sirvam melhor; a comida era péssima, gordurosíssima, eu fazia o possível para alimentar sem perigo o meu menino de oito meses.

Veio depois a nossa viagem para Nova York, eu esperando bebê, já chorando de saudade do Brasil. Era um navio inglês, primeira classe, e fabuloso. Mas não aproveitei nada: estava triste demais. Levei uma babá de 16 anos para me ajudar. Só que as intenções dela não eram de todo a de ajudar: fascinavam-na a viagem e a vida de diplomatas. E a Avani, carregada de livros de inglês e de cabeça inteiramente virada pela sua boa sorte, nem olhava para meu menino. E o destino dessa moça é algo de fantástico: eu, que não sei cozinhar, mas tenho a invenção, ensinei-a a cozinhar a ponto dela saber fazer suflê de chocolate (um dia darei a receita, San Tiago Dantas gostou muito: vem fervendo do forno e derrama-se por cima, na hora mesmo da pessoa se servir, creme de leite gelado e batido). Bem. Essa moça foi se desenvolvendo, aprendendo coisas de mim – apesar de me invejar e de me dizer que um dia o nome dela também ia sair no jornal – aprendendo a se vestir, a ter modos, a estudar. Mas quando nasceu o meu caçula, no entanto, ela pensava que recém-nascido tomava café com leite, e se surpreendeu que eu o amamentasse. Depois peguei uma segunda ajudante, a portuguesa Fernanda, que só me deixou para unir-se a um coronel americano. Passamos seis anos e meio em Washington. Eu voltei com meus filhos e Avani ficou. Casou-se com um inglês. E está tão bem que, quando estive no Texas para fazer uma conferência, e telefonei-lhe para Washington, ela me implorou de saudade: “Venha me ver!” Eu disse: “Não tenho tempo nem dinheiro.” E ela respondeu aos gritos: “Mas eu pago, eu pago!” Meu filho menor apelidou-a de Ava, em vez de Avani. Ela, que se apaixonara pela criança, adotou o nome, e assim ficou: Ava para cá, Ava para lá.

Da minha triste viagem para Nova York guardo um diploma de passagem pelo Equador, grande festa no navio, da qual não participei: tratava-se de jogar as pessoas mesmo vestidas na piscina. Só bebi champanha gelado, ultrasseco.

Acho que foram só essas viagens por mar. O resto foi tudo de avião, que adoro: voar é bom. E gosto de me arriscar. Fiquei contentíssima ao saber que há agora um avião para Cabo Frio. Pretendo usá-lo para um fim de semana.
Clarice Lispector

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