quarta-feira, março 6

Moral Elevado

Segunda-feira, naturalmente, abandonarei de vez o cigarro. Envergonho-me em revelar que deve ser a quinquagésima segunda-feira de uma série em que sairei de casa com o peito erguido e o olhar confiante dos bravos e fortes de vontade — eis que fumo em jejum a partir de umas cinco da manhã e já eram quase seis sem eu ter tocado em cigarro — e, depois de tomar um cafezinho no armazém de Inocêncio (Inocêncio não me cobra o café; mirem-se nesse exemplo, senhores proprietários de bares e restaurantes, notadamente os primeiros), começarei a vagar, o olhar agora desvairado e aflito, mastigando um graveto e parecendo personagem de filme tipo tornei-me um ébrio. Mas resistirei, desta vez vamos. Resolvo que ir trabalhar logo é a solução. Chego ao escritório, ligo o processador, o miserável do monitor resolve ficar piscando como letreiro de néon outra vez. Vou ter que abri-lo e futucar um negócio que tem dentro dele, que não sei o que é, mas, quando recebe uns piparotes rigorosos, faz retornar o engraçadinho ao normal. Mas ali pode dar um choque de uns 10 mil volts, mesmo com ele desligado, e aí o risco não justificaria um cigarrinho para aplacar o natural nervosismo?

Não, não, difícil conceber desculpa mais esmolambada (os piparotes são dados com uma canetona de plástico e eu vou de sola de borracha, sem tocar em nada mais). Até o Sérgio Cabral, que vai entrar no Guinness como deixador de fumar, ficaria envergonhado dessa. Não senhor, nada disso, o conserto vai sem anestesia mesmo. Milagrosamente, dá certo outra vez, ele fica até parecendo monitor de cinema americano, todo reluzente. Aí vou trabalhar. “Quinquagésimo” tem trema? Claro que tem, mas trema, como quase tudo mais, é meu pons asinorum e aí manda a neurose que eu pegue o Aurélio aqui atrás. Desde o tempo em que eu trabalhava em redação, isso significava uma pequena rotina coreográfica, cujo primeiro passo era acender um cigarrinho. Passo a mão automaticamente no lugar onde até ontem deixava a carteira de cigarros, não encontro nada, perco a vontade de abrir o dicionário.

Mas vamos em frente e de repente emperra tudo na cabeça e, sem me lembrar como, já saí da mesa de trabalho e estou no jardinzinho ao lado, com o mesmo ar que assumira no mercado. Que diabo estava escrevendo, não dava nem para entender direito, quanto mais prosseguir. Bartola, que está trabalhando lá dentro no atendimento, guarda uma carteirinha de cigarros na gaveta. Um só, um só, para quem fumava duas, três carteiras por dia, um cigarrinho só não tem a mínima importância. Mas é chato, já anunciei solenemente a Bartola que nunca mais tocaria nessa coisa imunda, vou me desmoralizar outra vez. Dou uma espiada, Bartola não está na mesa. Não! Furto não, não descerei a esse ponto! Repreendo-me com energia, embora lembre que até bagana eu já peguei, só faltando rastejar pela sarjeta. Nada disso, caráter é caráter!

Claro que caráter é caráter. Por isso mesmo eu, que não tenho nenhum, volto para defronte do processador outra vez e miro imbecilmente aquele texto besta, pensando em cigarro. Quase não consigo ler. Bato umas duas bobagens, não sei mais o que dizer e, cinco minutos mais tarde, com a cara mais cínica que posso fazer, estou junto a Bartola, pedindo um cigarrinho, um cigarrinho só. Algum tempo depois acabo o trabalho, à frente de um cinzeiro cheio, devendo uma carteira de cigarros a Bartola e com vontade de telefonar para o Cabral e pedir uma palavra de alento, nos intervalos da tosse dele. (Partilhamos do mesmo quarto durante a Copa do Mundo e de vez em quando, no meio da noite, eu acordava com a tossezinha dele, pensando que era un otro temblor de tierra, se bem que às vezes não era bem tosse, o Cabral é um homem de metabolismo muito vigoroso.)

Mas desta vez vai ser sério. Lembro o exemplo edificante do festejado cineasta e meu particular amigo Arnaldo Jabor, que acordou um dia assim meio retado, resolveu que não fumava mais e ficou com a carteira defronte só para poder curtir com a cara dela e nunca mais fumou e hoje está cada dia mais belo, é um atleta em todos os campos, os olhos ficaram azul-celeste e ele acertou uma quadra na loto. E, apesar de com essa conversa meio furada de que a vida começa aos 40, eu só estar nos meus verdes seis aninhos, lembrei também, não sei por que associação, da Grécia antiga.

Se eu fosse grego antigo, que bela ruína. Isto se não tivesse morrido de raiz de dente inflamada, difteria, saturnismo, sarampo, gastrenterite etc. etc. etc. Míope como uma toupeira, astigmata e com vista cansada, seria provavelmente conhecido como o Ceguinho da Ilha, tendo que ler através dos olhos de um escravo (isso também se eu desse sorte de não haver nascido escravo) e de noite não poderia nem sair, mesmo com lua. Sem um dente na boca ou então com todos aos cacos, teria deficiências nutricionais por não poder comer direito, além de não poder sentar ou talvez andar por causa do cisto que tirei atrás, em operação que me deixou sete dias no hospital. Não é à toa que dizem que, quando Sócrates fez 40 anos, ficou com vontade de morrer.

Sim, antibióticos, dentistas, cirurgiões, óculos, vacinas, a barra melhorou. Mas, não sei por quê, fiquei achando que eu era aquele grego antigo, apenas recauchutado. Até algum tempo atrás, eu, como todo jovem, era imortal, quem morria eram os outros. Agora que sou coroa, já passei até a fase do enfarte, durante a qual sofria uns quatro ou cinco por dia. Não, não, ainda fico cometendo esta estupidez, enfiando como um celerado fumaça venenosa e quente por uma traquéia que a esta altura deve parecer, porque é o que sinto, uma espécie de lamaçal nicotinoso ulcerado? Quer dizer, quebram o galho do grego antigo por fora, e eu trato de ficar igualzinho a ele por dentro, com admirável tenacidade.
Não senhor, esta segunda-feira é à vera. Tive até a felicidade de receber estimulante amparo médico, da parte do dr. Alcy, que encontrei no Largo da Quitanda. Ele não fuma, e quando soube da minha decisão e do estado de minhas vias respiratórias, fez uma pequena palestra científica.

— Melhor isso do que o que vai acontecer com você daqui a uns dois ou três anos, se não deixar — concluiu ele.

— O que é que vai acontecer comigo daqui a dois ou três anos, se eu não deixar?

— Morrer — disse ele, batendo afavelmente no meu ombro.

Quando cheguei em casa, chamei a mulher.

— Mulher, segunda-feira não fumo mais! Eu posso até jogar este isqueiro fora, porque hoje é domingo, só falta um dia e o gesto já tem lá seu valor simbólico.

Dramaticamente, lancei o isqueiro contra a mangueira, mas ela correu atrás dele, pegou-o e levou-o lá para dentro, colocando-o numa gaveta.

— Não se preocupe, querido — disse ela. — Terça-feira, quando você procurar, já sabe onde está.

João Ubaldo Ribeiro, "O Rei da Noite"

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