segunda-feira, março 4

Tempo de guerra

No final do verão daquele ano, ocupávamos uma casa, numa aldeia, de onde, além do rio e da planície, víamos as montanhas. O leito do rio era coberto de cascalho e de pedras, que ao sol pareciam secos e esbranquiçados. A água era muito límpida, ligeira e bastante azul nos pontos mais fundos. As tropas passavam pela casa, seguindo estrada abaixo, e a poeira que erguiam salpicava as folhas das árvores. Também os troncos das árvores estavam empoeirados. As folhas caíram cedo naquele ano. Víamos as tropas em marcha pela estrada, a poeira se levantando e as folhas caindo ao sopro do vento, e, depois que os soldados passavam, a estrada ficava branca e nua, exceto pelas folhas.

A planície abundava de plantações; muitos pomares com árvores frutíferas e, para além da planície, as montanhas pardas e calvas. Havia luta nas montanhas, e, à noite, podíamos enxergar os clarões da artilharia. Na escuridão, pareciam os relâmpagos do verão, mas as noites eram frias e não havia aquela sensação de uma tempestade chegando.


Às vezes, na escuridão, ouvíamos o rumor de tropas em marcha logo abaixo da janela, com os canhões puxados por tratores. Havia muito tráfego à noite e muitas mulas nas estradas com caixas de munição em ambos os flancos de suas selas, e caminhões cinzentos, cheios de homens, alguns com a carga coberta de lona, desfilando lentamente. Havia ainda grandes canhões, que passavam de dia, puxados por tratores, os longos canos camuflados de arbustos e galhos cobertos de folhas, além de videiras sobre os tratores. Olhando para o norte, víamos, além da planície, uma floresta de castanheiros; depois, a montanha, daquele lado do rio. Também houve muita luta pela posse daqueles morros, mas sem resultado; e no outono, com a chuva, caíram todas as folhas dos castanheiros. Os galhos estavam despidos e os troncos enegrecidos pela chuva. Os vinhedos tornaram-se também varas finas e desnudas, e por toda a região pairava a tristeza da chuva e da morte, algo típico do outono. Havia névoa sobre o rio e nuvens na montanha distante. Os caminhões chapinhavam e espirravam lama, e os soldados passavam sujos de barro e molhados, em seus capotes; os rifles estavam encharcados, e, por debaixo dos capotes, as duas patronas de couro cinzento na frente do cinturão, bastante pesadas, com os cartuchos de 6.5 mm, alongados e finos, estufavam tanto suas silhuetas, que faziam os homens em marcha parecerem grávidos de seis meses.

Pequenos automóveis cinzentos passavam ligeiros. Na maioria das vezes, havia um oficial no assento do lado do motorista e outros no assento traseiro. Os automóveis espirravam mais lama do que os caminhões; e se um dos oficiais do banco traseiro fosse muito baixo e viesse entre dois generais, mesmo sendo tão pequeno que não conseguíssemos ver seu rosto, mas apenas o quepe e suas costas estreitas, e se esse carro, ainda, estivesse correndo mais do que os outros, provavelmente este oficial seria o rei. Ele fixara-se em Udine e passava por ali quase todo dia para checar pessoalmente como andavam as coisas. E as coisas iam mal.

No início do inverno, vieram as chuvas ininterruptas, e com as chuvas chegou o cólera. Felizmente a epidemia foi combatida a tempo, e apenas sete mil soldados morreram vítimas dela.

No ano seguinte houve muitas vitórias. As montanhas para além do vale e a encosta onde cresciam os castanheiros foram capturadas, e também houve vitórias além da planície, no platô ao sul. Em agosto, cruzamos o rio e nos instalamos numa casa em Gorizia, com jardim murado bem-sombreado, uma fonte e videiras de glicínias roxas num dos lados da residência. A luta estava agora nos morros a pouco mais de um quilômetro e meio dali. A cidade era bonita, e nossa casa muito confortável. O rio passava pelos fundos, e a cidade fora capturada com facilidade, mas não foi possível tomarem os morros, e fiquei satisfeito com a impressão dada pelos austríacos de que desejavam voltar à cidade depois da guerra, se é que a guerra terminaria algum dia, porque não a bombardearam a ponto de destruí-la, mas só o necessário aos fins militares. Havia gente morando lá, e hospitais, cafés e artilharia em vários pontos, e ainda dois bordéis, um para os oficiais, outro para os soldados. Com o fim do verão, vieram as noites frias, a luta nas montanhas próximas, o bombardeio da ponte da estrada de ferro e a destruição do túnel perto do rio onde houve luta. E tudo — as árvores ao redor da praça e a longa avenida arborizada que dava nela, além das moças da cidade e o rei passando em seu automóvel, às vezes agora dando para enxergar seu rosto e seu corpo pequeno, mas com pescoço comprido, e sua barba grisalha como uma barbicha de bode, e mais os súbitos relances dos interiores das casas que haviam perdido algumas das paredes com os bombardeios, com reboco e entulho às vezes espalhados pelos jardins e pelas ruas, e com a coisa indo bem no Carso — acabou fazendo aquele outono muito diferente do anterior, que eu também passara na região. A guerra também havia mudado.

A floresta de carvalhos, nas montanhas para além da cidade, já não existia. Era uma floresta verde, no verão, quando chegamos, mas estava agora reduzida a tocos de árvore, a troncos caídos, a chão revolto. E num dia do fim do outono, quando eu estava andando pelo lugar que fora uma floresta, vi uma nuvem vindo sobre a montanha. Avançava depressa, e o sol ficou amarelo-pálido. Tudo se tornou cinzento, o céu se encobriu, e a nuvem desceu sobre a montanha.
Subitamente, estávamos dentro dela, e era neve. Vinha arrastada pelo vento e logo forrou o chão, com os tocos de árvore sobressaindo. Havia neve até sobre os canhões, e trilhas de neve amassada, indo até as latrinas, atrás das trincheiras.
Ernest Hemingway, "Adeus às Armas"

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