sexta-feira, março 7

'Capitães da Areia' continua a retratar o Brasil, 88 anos depois

O livro "Sobre o Romance Social: Ideologia e Significação em Capitães da Areia", de autoria de Leandro Lima Ribeiro, mestre em Linguística e Semiótica, lançado no final de 2024, analisa a linguagem e os significados da obra Capitães da Areia, de Jorge Amado, publicada em 1937. Segundo Ribeiro, o Brasil vive uma realidade muito semelhante à década de 1930 por conta da ascensão da extrema direita. Em sua obra, Jorge Amado conta a história de um grupo de crianças que morava em um trapiche e vivia pelas ruas de Salvador. “A partir daquele contexto que a gente vivia durante a pandemia [de 2020], de muitas pessoas em situação de rua, que chegaram até mesmo a falecer, eu pensei por que não trazer Capitães da Areia para os dias de hoje e entender ele a partir dos mesmos problemas que o Jorge Amado aponta em 1930, que continuam escancarados?”, diz Leandro Ribeiro.

De acordo com o pesquisador, por muito tempo, o romance foi ignorado pelo meio acadêmico, que considerava que seu viés político-partidário era mais importante do que a estética do texto e que, por isso, era uma literatura panfletária e de baixa qualidade. Já Leandro Ribeiro explora essa linguagem que se dizia ser desimportante: “a gente, obviamente, não desconsidera a ideologia, mas a nossa preocupação é compreender a semiótica, a significação e sua importância”, explica.

A narrativa de Jorge Amado traz trechos de jornais fictícios para representar a opinião da elite de Salvador, que dizia que os garotos eram “meninos assaltantes e ladrões que infestam nossa urbe”, segundo escrito na obra. Jorge Amado produz seu romance em um sentido contrário, colocando as crianças como sujeitos políticos, em mazela e abandonados, lutando por sua sobrevivência. Logo após o lançamento de Capitães da Areia, centenas de exemplares do livro foram queimados em praça pública pela Comissão de Busca e Apreensão de Livros da ditadura do Estado Novo, acusados de serem “propagadores do credo comunista”, como publicou o Jornal da Bahia.

- Acho [Capitães da Areia] uma obra que representa bem o Brasil da década de 1930 e o de hoje. A nossa configuração atual é muito parecida, porque a gente vê uma guinada da extrema direita adentrando os espaços, essas visões retrógradas. Ninguém pode ser diferente, todo mundo tem que seguir uma agenda moral e civilizatória à risca, e o que diverge disso, é sancionado.

Leandro Ribeiro defendeu o mestrado em Semiótica e Linguística Geral em 2022, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Agora, está no programa de doutorado na mesma área e com o mesmo orientador, Antônio Vicente Pietroforte. O pesquisador estuda, atualmente, a carnavalização da linguagem.

O estudo de Leandro explora as ideias e os papéis sociais em Capitães da Areia, que se apresentam de maneira oposta ao senso comum. O conceito de liberdade das crianças, por exemplo, não está relacionado com bens materiais, mas sim com a liberdade das ruas e com o poder de se esquivar das normas sociais. O especialista chama isso de carnavalização da linguagem, “que é a ótica do reverso. As dicotomias que a nossa cultura judaico-cristã nos impõe, como bom e mal, Deus e demônio, céu e inferno, é tudo ao reverso. Não existe só céu e inferno. Por que não pensar em um terceiro termo, em um outro modo de ser?”. De acordo com o especialista, o carnaval não está apenas nas festas, mas também na cultura brasileira, nas obras e nas expressões artísticas.

Outra questão que o pesquisador apresenta é a semântica de Exu, que explica como os capitães da areia são vistos pelos outros. Exu, entidade da umbanda e orixá do candomblé, é designado socialmente como parte de uma religião inferior e, ao mesmo tempo, causa medo e é chamado de demônio. As crianças passam por um estigma semelhante: são invisibilizadas, pois estão às margens da sociedade, e são (ultra)visibilizadas, termo criado por Leandro, já que são consideradas como ameaça por essa mesma sociedade. Leandro Ribeiro acrescenta que, de certa forma, toda a população de rua, negra e periférica e, também, as pessoas LGBTQIA+ passam por essa estigmatização.

O pesquisador destaca o papel da universidade de trazer visões diferentes sobre questões que parecem certezas, mas que não são, e para solucionar questões sociais e desfazer preconceitos. “O ensino, a pesquisa e a extensão devem ser voltados para a formação de cidadãos críticos e com autonomia intelectual”, diz. Ele afirma que apenas o conhecimento é capaz de transformar a sociedade e abrir espaço para novas possibilidades.

A narrativa de Jorge Amado lida constantemente com o emocional das personagens e, portanto, do leitor. Para analisar esse aspecto, Leandro Ribeiro escolheu o Sem-Pernas, tanto por ser a personagem que mais o sensibilizou, quanto por sua história ser diferente das outras crianças. Sem-Pernas desejava ter o carinho de uma família, por mais que isso fosse contrário ao conceito de liberdade do grupo. Quando percebe que não é possível, ele cria um sentimento de ódio contra a vida, chamado de cólera. O processo é tão violento que o garoto tira a própria vida.

O ódio de Sem-Pernas se inicia no momento em que ele entende que não possui os direitos humanos básicos e começa a ter a percepção de que não é um ser humano como os outros “e, portanto, ele recorre ao único direito possível, que é o direito à morte. Eu venho da periferia e a gente sempre lembra dos nossos amigos que brincavam conosco durante a infância e que perderam a vida, se entregaram à violência, à criminalidade, às drogas. Acho que ele representa muito bem isso”, relata o pesquisador.

Um censo realizado pela prefeitura de São Paulo em 2022 registrou que há 3.759 crianças e adolescentes em situação de rua na cidade. Deles, 80% mantém vínculos familiares e está nas ruas para gerar renda e ajudar a sustentar suas famílias, diferente da história de Jorge Amado, em que os jovens são órfãos.

Questionado, Leandro Ribeiro afirma que as questões problemáticas da infância na rua que aparecem em Capitães da Areia estão sendo mascaradas, mas permanecem. O especialista explica que o romance retrata a experiência de viver nas ruas por um lado relativamente positivo, mas que há questões negativas que perduram, como a criminalidade, a prostituição, sobretudo a infantil, e o uso de drogas. “É por isso que é uma encruzilhada, porque você fica diante dela e não sabe para onde vai”, complementa Leandro. Segundo ele, “o discurso da esfera pública começa a dizer que é melhor a criança desempenhando aquele papel [de sustentar a família] do que roubando ou matando, só que o problema em si não é superado”.

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