quarta-feira, junho 11

Enterrados vivos!

O chefe foi fiel à sua palavra e trouxe-nos provisões frescas em grande abundância. Achámos as tartarugas mais chinesas do que todas as outras que jamais provamos e os patos eram superiores às nossas melhores espécies de aves selvagens — excecionalmente tenros, suculentos e de sabor requintado. Além disso, os selvagens trouxeram-nos, depois de lhes termos feito compreender o nosso desejo, uma grande quantidade de aipo castanho e de cocleária, ou erva contra o escorbuto, assim como uma canoa cheia de peixe fresco e seco. O aipo foi para nós um verdadeiro presente e a cocleária teve um resultado admirável, conveniente para curar aqueles de nós que já apresentavam sintomas de doença manifestados. Em pouco tempo todos os enfermos se curaram. Recebemos ainda outras provisões frescas em abundância, entre as quais devo citar uma espécie de marisco, que pela forma se assemelhava ao mexilhão mas que sabia a ostra. Também nos trouxeram grande quantidade de camarões das duas espécies e ovos de albatroz e de outras aves, cujas cascatas eram negras. Embarcámos uma boa provisão de carne de porco, da espécie que já falei. A maior parte dos nossos homens achou um alimento agradável, mas a mim pareceu-me impregnado de um cheiro a peixe absolutamente repugnante. Em troca de todas estas boas coisas oferecidas aos nativos colares de contas azuis, joias de cobre, pregos, facas e tecidos vermelhos e eles se mostraram encantados com a troca. Estabelecemos na costa um mercado regular, ao alcance dos canhões da escuna, e todo o tráfego se desenrolou sob a aparência da boa fé e com uma ordem que não seria de esperar da parte dos selvagens a julgar pela sua conduta na aldeia de Klock-Klock.

As coisas correram desta forma agradável durante alguns dias e nesse período grupos de indígenas vieram a bordo da escuna, enquanto destaques dos nossos homens se deslocaram várias vezes pela terra, fazendo longas incursões para o interior e não sofrendo da parte dos selvagens nenhum vexame. Vendo a facilidade com que o navio pôde ser carregado de escombro-do-mar, graças à disposição amistosa dos ilhéus e ao auxílio que nos pôde prestar para o apanhar, o capitão Guy resolveu entrar em negociações com Too-wit relativamente à construção de edifícios protegidos para a preparação do artigo e à forma de recompensá-lo e aos seus homens pelo trabalho de encontrar o mais possível, enquanto nós aproveitaríamos o bom tempo para seguir a nossa viagem em direção ao Sul. Quando o chefe foi informado deste plano, pareceu disposto a aceitá-lo e, assim, o negócio foi concluído com vantagens para ambas as partes, ficando combinado que, depois dos preparativos necessários, tais como a escolha de um local conveniente e a construção de uma parte dos edifícios ou outras tarefas para as quais fosse preciso a participação de toda a tripulação, a escuna levantandoia angústia, deixando na ilha três tripulantes para vigiarem o cumprimento do projeto e ensinarem aos nativos o modo de secar o escombro-do-mar. Quanto ao modo de pagamento dependia do zelo e da atividade dos selvagens. Deveríamos receber uma certa quantidade de contas azuis, facas e panos vermelhos em troca de um certo número de piculs de escombro-do-mar, que foram preparados durante a nossa ausência.

Uma descrição da natureza deste importante artigo de comércio e do método de preparação pode ter algum interesse para os leitores e acho que esta é uma ocasião especial para o fazer. O relato que se segue, relativo à substância em questão, foi tirado de uma narrativa recente de uma viagem às mares do Sul:

"Este molusco das águas do Sul que comercialmente é conhecido pelo nome francês de bouche de mer (manjar extraído do mar) é aquele a que, se não estou em erro, Cuvier chama gasteropeda pulmonifera. Colhe-se em abundância nas costas das ilhas do Pacífico, principalmente para o mercado chinês, onde está cotado a alto preço, quase tanto como esses famosos ninhos comestíveis, que são feitos de uma matéria gelatinosa que determinada espécie de andorinha retira dos corpos dos moluscos. Não possuem nem concha, nem patas, nem qualquer membro saliente, exceto um órgão de jurisdição e outro de excreção, situados em partes opostas; mas, graças aos seus anéis, elásticos como os das lagartas e dos vermes, arrastam-se para os recifes pouco profundos onde, quando a maré está baixa, são apanhados por uma espécie de andorinha, cujo bico agudo eles penetram o corpo mole retirando uma substância gomosa e filamentosa que lhes servem, quando secos, para solidificar as paredes do ninho. Daí o nome de gasteropeda pulmonifera.

Estes moluscos têm uma forma oblonga e as suas dimensões variam entre 3 e 18 polegadas de comprimento; vi alguns que atingiam os dois pés. São quase redondos, mas preferencialmente achatados nos lados, aquele que é virado para o fundo do mar, e têm uma espessura que varia entre 1 e 8 polegadas. Arrastam-se pelos recifes pouco fundos em certas épocas do ano, provavelmente para se reproduzirem, pois são vistos muitas vezes aos pares. Aproximam-se da costa quando o sol incide sobre a água a aquecer e, por vezes, vão para águas tão pouco fundas que, quando a maré baixa, ficam expostos ao calor do sol. No entanto, não se reproduzem nos baixios, pois nunca vimos nenhuma criação e, quando os observamos a subida de águas mais fundas já tinham sempre sido atingidos o seu estado adulto. Alimentam-se principalmente dessa espécie de zoológico que o coral produz.

O escombro-do-mar apanha-se geralmente a uma profundidade de três ou quatro pés, depois do que é levado para a costa, onde, com a ponta de uma faca, se lhe faz uma incisão nas extremidades, com cerca de uma polegada ou mais, segundo as dimensões do molusco. Através desta abertura tiram-se as entradas, instruções o corpo do animal, as quais, aliás, são semelhantes a todos os pequenos animais que habitam o mar. São então lavadas e depois postas a ferver a uma determinada temperatura que não deve ser nem muito alta nem muito baixa. Seguidamente envolve-se em terra durante quatro horas, fervem mais um pouco e finalmente põe-se a secar ou ao lume ou ao sol. Os moluscos melhores são os que são secos ao sol, mas, enquanto por este meio se obtém o valor de um picul (133 libras e 1/3), ao lume podem-se secar trinta piculs. Quando são protegidos e secos, podem ser conservados sem perigo três ou quatro anos num local seco, embora seja necessário examiná-los de vez em quando, talvez quatro vezes por ano para ver se a umidade não os aqueceu e estragou.

Os chineses, como já disse, consideram o escombro-do-mar um dos mais deliciosos manjares, atribuindo-lhes os mais poderes altos nutritivos e fortificantes, além de o acharem hidratante para rejuvenescer um temperamento esgotado pelas volúpias desregradas. O molusco de primeira qualidade é altamente cotado em Cantão, onde se vende a 90 dólares o picul; o de segunda qualidade a 75 dólares; o de terceira a 50 dólares; o de quarta a 30 dólares; o de quinta a 20 dólares; o de sexta a 12 dólares; o de sétima a 8 dólares; e o de oitava a 4 dólares. No entanto, acontece que por vezes os pequenos carregamentos fornecem preços mais elevados nos mercados de Manila, Singapura e Batávia."

Estabelecido o acordo, desembarcaremos imediatamente tudo o que era necessário para começar as construções e desbravar terreno. Escolhemos um amplo terreno plano, perto da costa e da baía, onde existia em abundância água e madeira, e a uma distância conveniente dos principais recifes onde se podia procurar o escombro-do-mar. Pusemos todas as mãos à obra com grande afinco e em breve, para grande surpresa dos selvagens, abatemos um número de árvores suficiente para os nossos desígnios, as quais aparelhamos e fixámos para armar as construções. Ao fim de dois ou três dias os trabalhos foram tão adiantados, que os podíamos entregar descansados ​​aos três homens que deviam ficar em terra. Foram eles John Carson, Alfred Harris e… Peterson (todos de Londres, segundo julgo) que aliás se ofereceram para este serviço.

No fim do mês temos tudo preparado para partir. No entanto, combinámos fazer uma visita solene de despedida à aldeia, e Too-wit insistiu tanto na necessidade de cumprirmos esta promessa, que julgamos conveniente não o ofender com uma recusa definitiva. Julgo que naquela altura nenhum de nós tinha a menor dúvida sobre a boa fé dos selvagens. Todos os nativos se comportaram respeitosamente, auxiliando-nos de bom grado em nossos trabalhos, oferecendo-nos os seus produtos, muitas vezes gratuitamente e nunca, em caso algum, nos roubaram um único objeto, apesar do alto valor que atribuíam às nossas mercadorias a julgar pelas extravagantes demonstrações de alegria que ocorriam cada vez que os apresentavam. Especialmente porque as mulheres eram muito solícitas em tudo e, numa palavra, teríamos de ser os homens mais desconfiados do mundo para suspeitarmos de qualquer pensamento de perfídia da parte de um povo que nos tratava tão bem. Porém precisamos de pouco tempo para verificarmos que aquela aparente solicitude não era mais do que nunca o resultado de um plano bem treinado para nos levar à destruição e que aqueles ilhéus que nos tinham sentimentos inspirados de estimativa, pertenciam à raça dos mais bárbaros, manhosos e sanguinários miseráveis ​​que contaminaram o globo.

Foi no dia 1 de fevereiro que fomos à terra para visitar a aldeia. Embora, repito, não tivéssemos a menor suspeita, não negligenciaríamos nenhuma medida de precaução. Seis homens dirigidos a bordo da escuna, com ordem de não deixarem aproximar-se de nenhum selvagem durante a nossa ausência, sob que pretexto fosse, e de estarem sempre na coberta. Recolheram-se as redes de filerete, carregaram-se os canhões com uma carga dupla de balas e metralha e as roqueiras foram transportadas com as caixas de balas de espingarda. O navio estava ancorado, com a âncora a pique, a cerca de uma milha da costa e nenhum embarque se podia aproximar por qualquer dos lados sem ser vista e sem ficar imediatamente ao alcance do fogo da nossa artilharia.

Excluindo os seis homens que tinham ficado a bordo, o nosso grupo era constituído por trinta e dois indivíduos, todos armados até aos dentes com espingardas, pistolas e punhais, além de cada homem levar a sua faca de marinheiro, um pouco semelhante à faca de mato, hoje tão popularizada em todas as nossas regiões do Sul e do Oeste. Uma centena de guerreiros, envergando peles negras, foram ao nosso encontro para nos conduzirem. Devo dizer que notámos com certa surpresa que não estávamos armados. Quando interrogamos Too-wit sobre o assunto, respondemos-nos simplesmente: Mattee non we pa pa si — isto é — Entre irmãos não são precisas armas. Consideraremos esta resposta favorável e prosseguiremos nosso caminho.

Tínhamos já passado a nascente e o relato do que falamos anteriormente e penetrávamos numa garganta estreita através de colinas de pedra, no meio das quais estava situado na aldeia. A garganta era rochosa e muito desigual, a ponto de, por ocasião da nossa primeira incursão com Too-wit, a termos passados ​​com extrema dificuldade. A ravina desvia ter uma milha ou mais de comprimento. Serpenteava em mil sinuosidades através das colinas (em épocas recuadas desviavam ter sido o leito de uma torrente) e nunca continuava mais de vinte metros sem fazer uma curva brusca. Tenho a certeza de que as vertentes deste vale se elevavam a mais de 70 ou 80 pés de altura na perpendicular e, em alguns sítios, as paredes atingiam tal altura que impediam a penetração da luz do dia. A largura média era de cerca de quarenta pés, mas por vezes estreitava tanto que só cabiam cinco ou seis homens de frente. Em suma, não poderia existir o melhor local para uma emboscada e não é de estranhar que nos agarrássemos às nossas armas assim que lá entremos.

Quando agora penso em nossas loucuras enormes, o que mais me espanta é que nos tivéssemos aventurado daquela maneira, sem atender às situações, colocando-nos assim à disposição de animais selvagens desconhecidos, a ponto de instruções nos permitiria caminhar adiante e atrás de nós durante toda a extensão da ravina. No entanto, foi essa a ordem que cegamente adotámos fiando-nos estupidamente na nossa força, no desaparecimento das armas de Too-wit e dos seus homens, no efeito das nossas armas de fogo, cujo funcionamento ainda era um segredo para os nativos e, acima de tudo, nas repetidas manifestações de amizade dessas infames canais. Cinco ou seis deles abriram caminho, como que para nos mostrar a estrada, fazendo gala nos seus cuidados, afastando pomposamente as grandes pedras ou outros objetos que nos entravassem no caminho. A seguir-nos, caminharíamos juntos, pois a nossa única preocupação não era nos separar. Atrás segue o corpo principal dos selvagens, numa ordem e correção perfeitamente insólitas.

Dirk Peters, um tal Wilson Allen e eu caminhávamos à direita dos nossos camaradas, examinando tudo ao longo do percurso, nas estranhas estratificações da muralha que se erguiam sobre as nossas cabeças. Uma fenda na rocha despertou-nos a atenção. Era larga o suficiente para permitir a passagem de um homem e penetrava na montanha dezoito ou vinte pés em linha reta, virando depois para a esquerda. A altura do buraco, até onde podíamos ver, era de sessenta ou setenta pés. Através das sinuosidades cresceram dois ou três arbustos enfezados, que lembravam um pouco a aveleira e que eu tive a curiosidade de examinar; com este objetivo avancei resolutamente, tirei cinco ou seis avelãs de um cacho e me aposentei a toda a pressa. Quando você voltaria, verifiquei o que Peters e Allen me haviam seguido. Pedi-lhes que recuassem, pois não havia espaço para deixar passar duas pessoas e disse-lhes que dariam algumas das minhas avelãs. Assim, os meus companheiros deram meia volta e dirigiram-se para o caminho. Quando Allen estava quase à entrada da gruta, senti, de repente, uma sacudida, como nunca tinha experimentado, a qual me produziu uma vaga ideia (se na verdade posso dizer que tive uma ideia) de que as fundações do nosso globo estavam a ruir e que a hora da destruição final tinha chegado.
Edgar Allan Poe

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