terça-feira, junho 10

Minha cidade, em janeiro

O que minha cidade tem de mais pulcro e legítimo é o rosto da moça atrás do vidro fumê do 18º andar do edifício da companhia de investimentos. O rosto aparece às 17h55min, de segunda a sexta, quando ela espia a calçada antes de bater o cartão de ponto no relógio. O namorado da moça tem uma moto de milhões de decibéis e faz tantas loucuras no cruzamento da avenida que, em certos momentos, parece que vai bater as asas de metal e se transfigurar num anjo barbudo e entrar no bairro do Paraíso, para tomar um sorvete de tutti-frutti com duas casquinhas.

O que minha cidade tem de mais operoso e legítimo é o crioulo de capacete ocre que enfia a ponta do martelo mecânico na viga de concreto e rompe o útero da Rua das Palmeiras, onde corre um braço subterrâneo do Metrô. O capacete do crioulo lembra um sol boiando no suor da cara e, quando a tarde cai, o capacete fica de riba como porongo decepado em cima do balcão, enquanto o garoto do bar serve um traçado ao som do liquidificador.

O que minha cidade tem de mais vetusto e legítimo é o fantasma do coronel Arouche que guardou suas emas, jaçanãs, pacas e bacamartes na arca do passado e transita incógnito e invisível por entre as mesinhas de pinguços e desesperados com olhos cor de quitinete. O coronel Arouche por hábito arrasta as botas sujas de lama do tempo em que o Anhangabaú dava curimbatá e a cidade tinha pontes de madeira, onde hoje ficam os Correios e Telégrafos. O coronel Arouche é transparente e se encontra com o brigadeiro Tobias na sacada solitária do prédio Martinelli nas noites de lua e garoa.

O que minha cidade tem de mais amargo e legítimo é o corpo em decúbito dorsal, ainda não identificado, coberto com a última página do vespertino, e um para-choque de jamanta com tinta fresca vermelha: cuidado, não encostar que é sangue.




O que minha cidade tem de mais imperceptível e legítimo é o violino que toca de manhã cedo na Rua Conselheiro Furtado tangido por um chinês de Formosa que vende penas de nanquim na Liberdade e escreve, em hieróglifos, poemas para um velhinho de barba fina que tem 98 anos, nasceu em Kioto, e adora doce de feijão, peixe cru e forró.

O que minha cidade tem de mais pardo e legítimo são os paquidermes dos edifícios que ressonam rente ao Minhocão e cujo pescoço alado se atira sobre Santa Cecília, Bexiga, Vila Buarque, até esmorecer diante da torre de São Geraldo das Perdizes.

O que minha cidade tem de mais acordado e legítimo é o Ponto Chic, onde a Polícia, a malandragem e a boemia confraternizam e meditam sobre a glória passageira das valentias, dos sanduíches e do chope gelado.

O que minha cidade tem de mais revolucionário e legítimo são as conversas fiadas dos bares de Vila Madalena, onde um garçom de vanguarda bolou uma perfeita bomba de efeito retardado com meia dose de dor-de-cotovelo, algumas gotas de amargo, dois dedos de esperança disfarçada, e alegria q.s.p. encher o coração.

O que minha cidade tem de mais álacre e legítimo é o alarido dos mochileiros, flautistas, barraqueiros e fugitivos no Terminal Rodoviário do Jabaquara, ao dizerem adeus no sábado de manhã, em busca do mar do Sul, e voltando domingo à noite tostados de cerveja, sol, areia e mariscos, até empalidecerem outra vez no cotidiano das lojas, armarinhos, butiques, bancos e guichês.

O que minha cidade tem de mais fácil e legítimo é esta disponibilidade para aceitar as coisas como são – a vida e a morte – e concluir que tudo é possível: sardas, celulite, bronze, paralelepípedo, cartório de protesto, bala perdida, impropérios, maldições, arrependimentos, conversões, penitências, desuniões definitivas, casamentos eternos, bodas de ouro, tombos, porões, amizades, ervas medicinais, macumbas, crediários, a estátua de Anchieta, o Pátio do Colégio, os mascateiros da General Carneiro, o lausperenee Santa Ifigênia, os sinos de São Bento, e o sol no merídio iluminando colarinhos sociais.

Bazar de coisas, caos e golfo, cartão-postal da pressa, porto de ternuras, buquê de pamplonas, angélicas, azaléias, fuligens e augustas, moquifos e tugúrios, campeonato mundial entremeado de pernetas e fraturas, solidões cercadas de risos e de festas, macarronadas infinitas, pizzas, chaminés e a via-láctea de fumaça corrigindo as estrelas verdadeiras.

Mas, por fim, eu revelo: o que esta cidade tem mesmo de mais fiel e legítimo é o amor e a raiva deste amante anônimo, quando a cidade finge não me ver no meio do povo que a habita.

Lourenço Diaféria, “A morte sem colete” 

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