Esta cabeça contra aquele muro.
Fernando Pessoa, “Fausto”
Ainda não tinha vestido totalmente o vermelho, já os gritos lhe chegavam.
Ouviam-se distintamente. Seria fácil localizá-los. Gritos estrídulos, misturados com o retinir do metal e o silvo de imprecações, espalhando-se sem ordem e rigor. E eis que apareciam algumas palavras. Erguiam- se em altaneiro porte, estrebuchando conflito, apesar de minadas pela doença que lhes deformava o corpo e dominava a mente.
Volúpia. Dinheiro. Insurreição. Ganância . Soberba. Lucro. Uma plataforma de palavras afins , organizada em hordas cruéis a subjugar outras de significantes mais nobres. Esgrimiam-se apesar da beleza que o encarnado, o vermelho pode incorporar.
O tempo da riqueza pela riqueza enchera as cabeças de cifrões. E era do dinheiro o maior poder. O maior sortilégio daquele tempo. Como estancar tal perfume ?
Enquanto discorria, as palavras sucumbiam em aflitiva luta pela sobrevivência. O jugo das mais fortes oprimia as mais discretas, as mais límpidas, embora estas não se permitissem morrer. Gritavam em surdina, em nítido contraste com a estridência dos opressores que enchia o ar.
Começaria pela fome, pela pobreza, pelo desespero, pelo desemprego, pelo abandono, pela velhice, pela natalidade, pela saúde, pela paixão, pela felicidade. Todas eram importantes. Todas acorriam à sua passagem numa súplica justificada . Escapava-lhe, porém, a mais valiosa. Aquela que seria capaz de redimir, aquela cuja força regeneradora era reconhecida: a Dignidade.
Ainda não a vira. Não a distinguira entre os gritos. Onde estaria? Que seria dela?
Procurou-a.
Ofegante, inanimada esmorecia com o peso da ganância que a violentava num esforço heroico, enquanto as forças ainda lhe pertenciam. Numa Travessa sem nome, estavam em titânica desvantagem. A ganância era um manto púrpura a esmagar a túnica vermelha da Dignidade. Que fazer perante tão rude inconformidade?
Socorreu-se dos sons e fez ouvir Wagner. O triunfo exige sempre um faustoso manto. O poder da ilusão prevalece nos espíritos néscios onde reina a ganância.
Fiel à força da sedução, da vã glória, o manto ergueu-se e a dignidade libertou-se daquele vil peso. Vinha combalida, desgastada pelo espezinhamento constante dos poderosos que, de ganância em ganância, tinham transformado o mundo num mercado de agiotas.
Mundo onde os nomes eram traduzidos por algarismos e as palavras esqueciam a força da nomeação. Mundo onde os adjectivos se colavam aos números como cola que pega e se acomoda em território alheio.
Ao afinar aquela palavra, seria como recuperar a alma adormecida da humanidade, como restabelecer o primeiro direito universal do Homem.
Concentrou-se. Começou a afiná-la. Agora, já era o génio de Mozart que se ouvia. Quando afinava as palavras trazia a música nos ouvidos. Que poder tinham os sons. Os movimentos molto allegro e andante da Sinfonia nº 40 ressoavam e imperavam. Como o contagiavam em inspiração e perícia.
Redesenhou, limpou, envernizou, curou aquela enorme palavra.
Num longo vestido vermelho vivo, ela olhou-o e sorriu-lhe deslumbrante. E com ela de pé, firme e robusta , outras vieram animadas pela metafísica, pela semântica, pela música de Mozart ou pela simbologia do vermelho que nunca deixa de acolher quem vem por bem.
Todas as palavras que se solidarizavam, que se irmanavam chegavam céleres.
Apresentavam-se radiosas, vestidas no mais brilhante vermelho renovado. Vinham em fraterna celebração, coligadas por uma profunda comunhão identitária.
Ao restaurar a Dignidade , tudo se precipitara. Tudo se congregara.
Naquele dia, o caminho estava feito.
Maria José Vieira de Sousa, "O Afinador de Palavras"

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