Ilustração: Guilherme Caldas |
(Documento encontrado na biblioteca de Tinos, supostamente escrito por Maffeo Polo, trazido à luz por José Roberto Torero)
Pelos vinte e quatro anos que viajei com meu sobrinho Marco Polo, vi coisas que meus olhos mal puderam acreditar, ouvi histórias que minhas orelhas quase não creram e senti cheiros que meu nariz por pouco não conseguiu suportar.
Mas, de tudo o que vi, ouvi e respirei, o que mais me impressionou foram as bibliotecas. Talvez por gostar delas assim como outros homens amam bodegas, bancos e bordéis, foram as bibliotecas que mais me chamaram a atenção.
Eu, que pensava que elas eram sempre iguais, um lugar cheio de livros para serem consultados, encontrei no oriente bibliotecas de tantos modos e formas que só o descrevê-las já encheria uma outra biblioteca. Por isso, serei modesto e apenas direi como eram algumas delas.
Em Khubeis, além do deserto de Lut, há uma curiosa biblioteca formada apenas com livros em branco, pois o ilustrapovo da cidade não sabe ler. Porém, como a gente de Khubeis ouviu dizer que folhear livros é algo que traz respeito e nobreza, a cidade construiu uma biblioteca, que está sempre lotada por seus vaidosos analfabetos.
Em Arzinga, perto do Monte Ararat, há uma biblioteca que possui pesados livros sobre matemática, grandes arrazoados teológicos e longos discursos de reis, ou seja, leituras que dão muito tédio. Por isso a biblioteca, muito sensatamente, em vez de cadeiras, usa redes, de forma que os leitores podem ceder ao inevitável sono e dormir à vontade.
A biblioteca de Balkh fica numa grande e estreita torre, que tem em seu interior uma escada em espiral. Seus livros ficam numa longa prateleira que segue a escada do começo ao fim, com exatamente um livro por degrau. O curioso é que a regra da biblioteca diz que os leitores têm que ler primeiro o primeiro livro, depois o segundo, só então o terceiro e assim por diante. Até hoje ninguém chegou ao topo da torre, onde está o livro derradeiro, o da sabedoria suprema. Uns dizem que é um pergaminho escrito por deuses. Outros, que é um livro de piadas.
Qazan é a capital da Tartária, país dominado há muito tempo pelo rei mongol Kublai Khan, neto do poderoso Gengis Khan. Kublai não aprecia muito as pessoas que têm ideias diferentes das dele, e tanto é assim que, na enorme biblioteca de Qazan, todos os seus exemplares são de apenas um livro: As memórias e as ideias de Kublai Khan, soberano das terras e almas da Tartária. A Biblioteca de Qazan está sempre vazia, sendo frequentada apenas de quando em quando por funcionários públicos que querem subir de posto.
Em Kan-Cheu há uma curiosa biblioteca feita para guerreiros que perderam os braços. Os livros são colocados abertos sobre suportes, de forma que os leitores podem virar as páginas apenas com a língua. Para estimular a leitura, os livros de Kan-Cheu são impressos em papéis de variados sabores, desde a forte carne de bode até o delicado pêssego. Assim, muitas vezes os leitores acabam escolhendo livros não por seu gosto literário, mas pelo gastronômico.
No deserto de Taklamakan há uma carroça puxada por dois camelos que, na verdade, é uma biblioteca. Seu único funcionário passa o tempo atravessando o deserto de um lado para o outro, emprestando e recolhendo livros. A carroça só possui obras sobre viagens, mas nenhum deles é sobre o deserto de Taklamakan, de modo que os leitores que pegam os livros desta biblioteca ambulante sempre fazem duas viagens ao mesmo tempo, uma com os pés e outra com a cabeça.
Triste fim teve a biblioteca de Kashgar, que só possuía livros de histórias de dragões. Para causar ainda mais medo aos leitores, a biblioteca de Kashgar só funcionava à noite, sendo iluminada por velas. Porém, um dia, um leitor mais impressionável assustou-se de tal maneira que derrubou sua chama numa das cortinas, incendiando a biblioteca, que naquela noite cuspiu fogo de suas janelas como se tivesse se transformado num de seus personagens.
Outra famosa biblioteca que fechou suas portas foi a de Si-ning, pelo motivo de ser perfeita demais. Ela continha tão somente livros eróticos, muitos trazidos da Índia, com ilustrações fantásticas, de rara beleza e raríssimo realismo. A biblioteca era decorada com tapetes em vez de cadeiras, de modo que os amantes podiam ler deitados um ao lado do outro. Com isso, em poucos anos cresceu tanto a população de Si-ning que as autoridades tomaram por bem acabar com a biblioteca.
Em Trebizonda, a cidade das amazonas, os livros não são escritos em papéis, mas tatuados no corpo de belos homens, que vivem na biblioteca esperando para serem lidos pelas guerreiras. Elas tocam-lhes os corpos de todos os jeitos, apalpando uma parte, esgarçando outra, levantando aqueloutra, como se virassem páginas. O triste é que, quando os homens envelhecem e suas peles ficam murchas, embaralhando as letras, são eles queimados, assim como se faz com alguns livros roídos pelas traças.
Atravessando o rio Tigre chega-se à cidade de Bandahar, onde há uma singular biblioteca em que os livros são escritos pelos usuários. Ou seja, cada vez que alguém lê um livro, acrescenta-lhe uma frase, um parágrafo ou mesmo uma página, de modo que, assim como a história do mundo, as histórias dos livros jamais têm um fim e são escritas por todos.
E em Tinos achei a curiosa biblioteca das mentiras, que não aceita para suas prateleiras nenhum escrito que tenha um pingo de verdade, só aceitando livros, cartas e folhas com coisas inventadas, porque dizem os bibliotecários de Tinos que as verdades mudam com o tempo, mas as mentiras são sempre mentiras, sendo por isto muito mais honestas e confiáveis.
Maffeo Polo, 12 de dezembro de 1296.
José Roberto Torero
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