segunda-feira, novembro 23

Memórias de livreiro de Orwell

(Na esquina entre Pound Street e South End Green em Londres existia uma livraria onde George Orwell trabalhou entre 1934 e 1935, hoje transformada em pizaria. Orwell viveu nesse mesmo edifício onde escreveu o texto “Bookshop Memories”)








No fim de contas, acaba-se por identificar estas pessoas mal se as vislumbra. Muitas vezes, quando estávamos perante um paranóico autêntico, colocávamos de parte os livros que ele pedia e depois voltávamos a pô-los nas prateleiras mal ele se ia embora. Reparei que nenhuma destas pessoas alguma vez tentou levar os livros sem os pagar. Encomendá-los era suficiente – suponho que lhes dava a ilusão de estarem de facto a gastar dinheiro.

Como a maior parte dos alfarrabistas, tínhamos alguns negócios paralelos. O principal era uma biblioteca de empréstimo – a habitual biblioteca «dois pennies sem depósito», com cinco ou seis centenas de volumes, todos de ficção. A loja ficava exactamente na fronteira entre Hampstead e Camden Town e era frequentada por toda a espécie de pessoas, desde baronetes a motoristas de autocarro. Provavelmente, os membros da nossa biblioteca constituíam uma razoável amostra dos leitores londrinos. É por isso que vale a pena salientar que, de todos os autores que havia na biblioteca, aquele que «saía» mais era... Hemingway? Walpole? Wodehouse? Não. Era Ethel M. Dell. Os romances de Dell, claro, são lidos exclusivamente por mulheres, mas por mulheres de todos os géneros e idades, e não apenas, como poderia supor-se, por solteironas melancólicas e pelas anafadas mulheres dos tabaqueiros. Não é verdade que os homens não lêem romances, mas é verdade que há todo um naipe de géneros de ficção que eles evitam. Falando no geral, aquilo que pode designar-se como o romance comum parece existir apenas para as mulheres. Os homens lêem somente romances que mereçam algum respeito, ou histórias de detectives. Ainda assim, o seu consumo de histórias de detectives é impressionante.

Numa biblioteca de empréstimo apercebemo-nos do verdadeiro gosto das pessoas, e não daquele que elas pretendem mostrar. Uma das coisas mais notórias é o facto de os romancistas ingleses «clássicos» terem perdido completamente o favoritismo. É absolutamente inútil colocar na biblioteca de empréstimo o Dickens, o Thackeray, a Jane Austen, o Trollope, etc. Ninguém pega neles. Basta as pessoas avistarem um romance do século dezanove para dizerem «Oh, isso é velho!», fugindo imediatamente. Todavia, é relativamente fácil vender Dickens, tal como é sempre fácil vender Shakespeare. Dickens é um daqueles autores que as pessoas têm «sempre a intenção de» ler e, do mesmo modo que a Bíblia, é bastante popular entre os livros em segunda mão. As pessoas sabem, por ouvirem dizer, que Bill Sikes era um gatuno e que o Sr. Micawber era careca, tal como sabem por ouvirem dizer que Moisés foi encontrado num cesto de juncos e viu a traseira do Senhor.

Será que eu gostaria de ser livreiro de métier? Considerando tudo – apesar da gentileza do meu patrão e de alguns dias felizes que passei na livraria – não. Com uma posição satisfatória e o capital adequado, qualquer pessoa instruída é capaz de viver razoavelmente de uma livraria. A não ser que se aventure nos livros «raros», não é um negócio de aprendizagem difícil e começa-se com vantagem se se souber alguma coisa acerca do interior dos livros. Para além disso, é uma ocupação humana e portanto não é susceptível de banalização a partir de certo ponto. Os consórcios nunca poderão espremer e aniquilar o pequeno livreiro independente, como fizeram com o merceeiro e o leiteiro. Mas são longuíssimas as horas de trabalho e é uma vida pouco saudável. Em regra, as livrarias são terrivelmente frias no Inverno, porque se estiver muito quente as montras ficam embaciadas e um livreiro vive das suas montras. E os livros ficam com mais pó, e um pó mais desagradável, do que qualquer outra espécie de objectos jamais inventada; para além disso, o topo de um livro é o lugar preferido da mosca azul para morrer.

Mas a verdadeira razão que me faz rejeitar a ideia de passar o resto da vida no negócio dos livros é o facto de, enquanto me dediquei a ele, ter perdido o amor pelos livros. Um livreiro tem de mentir acerca dos livros e isso faz com que passe a não gostar deles; ainda pior é o facto de estar constantemente a limpar-lhes o pó e a puxá-los para a frente ou a empurrá-los para trás. Houve uma época em que eu de facto adorava livros – quero dizer, adorava vê-los, cheirá-los e senti-los, pelo menos se tivessem cinquenta ou mais anos. Mas assim que fui trabalhar para o alfarrabista, deixei de comprar livros. Hoje em dia, compro um livro de vez em quando, mas só se for um livro que quero ler e não posso pedir emprestado, e jamais compro porcaria. O cheiro doce do papel envelhecido já não me seduz. Está demasiado associado, na minha cabeça, a clientes paranóicos e a moscas azuis mortas.

( Transcrito de Pó dos Livros  com tradução e adaptação de Madalena Alfaia)

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