quinta-feira, agosto 10

Assim começa o livro...

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O passado é um fantasma que não se deve convocar com médiuns ou invocar com abra-essa-obra. É na realidade da recordação um revenant irreal. Não é preciso pôr as mãos na mesa, palma para baixo, ou responder aos três toques rituais ou perguntar “Quem está aí?”. O espírito do passado sempre está aí. Um copo d’água e uma flor amarela bastam. Não é preciso repetir frases encantatórias ou cast a spell: todos os mortos estão aí, vivos, exibidos detrás de uma vidraça negra, uma câmara escura, uma obra de artifício. Os entes passados vivem porque não morreram para nós. Vivemos porque eles não morrem. Nós somos os mortos-vivos.

É no passado que vemos o tempo como se fosse o espaço. Tudo fica longe, na distância em que o passado é uma imensa campina vertiginosa, como se caíssemos de uma grande altura e o tempo da queda, a distância, nos tornasse imóveis, como acontece com os mergulhadores dos penhascos, que vão caindo numa enorme velocidade e no entanto para eles não se cai nunca. Assim caímos na recordação. Nada parece ter se movido, nada mudou porque estamos caindo a uma velocidade constante e só os que nos veem de fora, vocês leitores, se dão conta de quanto descemos e a que velocidade. O passado é essa terra imóvel da qual nos aproximamos com um movimento uniformemente acelerado, mas o trajeto — tempo no espaço — nos impede de nos afastar para ter uma visão que não esteja afetada pela queda — espaço no tempo — voluntária ou involuntária. O tempo, mesmo detido, dá vertigem, que é uma sensação que só o espaço pode dar.

O passado só se faz visível através de um presente fictício — e no entanto toda ficção perecerá. Não restará então do passado mais que a memória pessoal, intransferível. Não me interessa a impostura literária mas a verdade que se diz com palavras que necessariamente vão umas atrás das outras embora expressem ideias simultâneas. Sei que uma frase é sempre uma questão moral. Há uma memória ética? Ou é estética, isto é, seletiva?

A memória é outro labirinto em que se entra e às vezes não se sai. Mas são fantásticos, inúmeros, os corredores da memória, fora da qual há um só tempo real que é aquele que se recorda — isto é, eu mesmo agora quando a máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.

Escrever, o que faço agora, não é mais que uma das formas que a memória adota. O que escrevo é o que recordo — o que recordo é o que escrevo.

Entre ambas as ações estão as omissões — que são os interstícios, o que resta. Isto é, meu buraco: o espaço do tempo recordado. É tão fácil recordar, tão difícil olvidar... Não é o que diz a canção? Ou diz...? Não me lembro, olvidei. Recordar é gravar num idioma ou outro. Mas olvidar não tem equivalência...

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